Beethoven deixou testemunhos biográficos preciosos em cadernos de conversação
De arma contra a deficiência a testemunhos valiosos
Em princípio, sua finalidade era garantir a comunicação mesmo com o avanço da surdez. Mas resultaram em documentos preciosos sobre a arte e vida do compositor: neles, a “Missa solene” está lado a lado com ostras e vinho.
Gerhard von Breuning, amigo de Ludwig van Beethoven (1770-1827), registra em suas memórias que um “caderno de correspondência, completo com lápis” estava sempre à mão quando o compositor recebia visitas. Lá, estas anotavam suas contribuições à conversa, e na maioria das vezes ele geralmente respondia oralmente.
Mas o músico atormentado pela surdez também usava os cadernos para esboçar ideias musicais ou fixar pensamentos importantes. Assim, os chamados “cadernos de conversações” (Konversationshefte) não só permitem uma olhada em sua “oficina musical”, como também dão uma visão bem próxima do ser humano por trás do gênio.
Para o especialista beethoveniano Emil Platen, trata-se de um tesouro de valor inestimável. “Os cadernos são tremendamente importantes para a pesquisa biográfica sobre Beethoven. Com sua ajuda, pode-se ter uma visão bem precisa de suas circunstâncias de vida, de 1818 até a morte”, comentou à DW.
Ostras e Missa solene
Os cadernos tematizam tanto ocorrências cotidianas banais quanto questões de relevância musical. “Muitas vezes o assunto é apenas comida, ou problemas com o estafeta, e, mais tarde, doenças e tentativas de terapia”, conta Platen. “Mas também pode ser a atualidade cultural e social de Viena.”
Assim, enquanto numa página de um dos cadernos de conversação encontra-se uma conta de vinho, carne de vitelo e ostras, na página ao lado encontram-se esboços para Et vitam venturi saeculi, um dos movimentos do Credo da Missa solene.
Durante muito tempo, o valor documental dos cadernos era considerado questionável, pois após a morte de Beethoven, eles caíram – presumivelmente de forma ilícita – em poder de Anton Schindler, secretário do compositor nos últimos anos e seu primeiro biógrafo.
Ao preparar a biografia, Schindler instrumentalizou os cadernos para seus próprios fins. Muitos, ele destruiu; em outros incluiu diálogos inventados, visando se estabelecer como aquele a quem Beethoven confiava todos os desejos referentes à prática de execução e aos andamentos de suas obras. Os contemporâneos do ex-secretário já suspeitavam de fraude, porém apenas no século 20 foi possível desmascarar numerosas inverdades.
Da Antiguidade aos contemporâneos
Entre os visitantes que constam dos cadernos estão amigos de Beethoven, seu irmão Johann e seu sobrinho Karl, mas também contemporâneos importantes, como o poeta Franz Grillparzer, os compositores Carl Czerny e Gioachino Rossini, além do prodígio pianístico Franz Liszt, na época contando apenas 11 anos de idade.
Uma vez que, via de regra, o protagonista formulava oralmente suas perguntas e respostas, os cadernos se assemelham à transcrição de telefonemas em que as reações do outro lado da linha não estão documentadas. Assim, só se pode especular sobre as observações de Beethoven.
As anotações também refletem a grande bagagem cultural do genial artista. Muitas vezes, trata-se de preferências literárias, dos autores da Antiguidade clássica, como Homero, Plutarco e Platão, a Shakespeare, Rousseau, Goethe, Klopstock, Lessing e Schiller.
Do caderno de conversação de 1º de fevereiro de 1820, em meio ao trabalho na Missa solene, ele introduz uma citação da Crítica da razão prática, do filósofo alemão Immanuel Kant: “A lei moral em nós e o céu estrelado sobre nós – Kant!!!”. Para o artista influenciado pelo ideal do Iluminismo, essa frase se tornou um lema para a vida e a composição.
Estado policial
Muitas entradas nos cadernos de conversação partem do altamente político círculo de amizades de Beethoven. Nas tabernas, discutiam-se os acontecimentos do dia, sobretudo os efeitos do Congresso de Viena, que em 1814-15 redefinira as fronteiras na Europa, após a queda de Napoleão Bonaparte.
Sob a ditadura do príncipe Clemens von Metternich, um em cada cinco cidadãos vienenses atuava como espião do Estado, na qualidade de “policial secreto”. Numa ocasião em que o compositor aparentemente tencionava dizer algo crítico, ele é logo advertido por uma anotação: “Em outra hora – no momento o espião Haensl está aqui”. Nesses casos, Beethoven também recorria ao lápis.
Grande parte dos cadernos trata das obras beethovenianas. Aqui, ele se mostra, acima de tudo, um artista cheio de autoconfiança. Sobre a Missa solene, escreve: “É uma obra da eternidade”. Quando, em 1822-23, um visitante opina que o artista deve ceder ao espírito de seu tempo, Beethoven replica que jamais fará tal coisa:
“Senão, acabou-se toda a originalidade. Não posso recortar e modelar minhas obras segundo a moda, como a gente quer: o novo e original se gera a si mesmo, sem que se pense a respeito.” Em março de 1820, ele já se expressara de modo semelhante: “O mundo é um rei, e quer ser adulado – porém a verdadeira arte tem vontade própria, não se deixa constranger dentro de formas aduladoras”.
Ao ser informado de que os espectadores haviam reagido com incompreensão a um de seus últimos quartetos de cordas (possivelmente o Nº 13, em si bemol maior, opus 130), o post de Beethoven é bem sumário: “Uma hora vão gostar. Eu sei, eu sou um artista”.
Autores: Marita Berg / Augusto Valente
Revisão: Carlos Albuquerque