Educação Inclusiva

O verde não é o azul listado de amarelo: considerações sobre o uso da tecnologia na educação/reabilitação de pessoas com deficiência

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Por: Maria Teresa Eglér Mantoan*

“A igualdade foi inventada porque os humanos não são idênticos.”
(François Jacob. – La diversité, sel de la vie, 1979).

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O desenvolvimento de estudos e de aplicações envolvendo o uso de tecnologias em educação e reabilitação de pessoas com deficiência é, no geral, centrado em situações locais e tratam de incapacidades específicas. Serve para compensar dificuldades de adaptação, cobrindo déficits de visão, audição, mobilidade, compreensão e outros. Projetos, protótipos e instrumental dessa natureza conseguem reduzir as incapacidades, atenuar as dificuldades, fazem falar, andar ouvir, ver, aumentam as possibilidades de aprender.

Mas isto só não basta. O que é o falar sem o ensejo e o desejo de nos comunicarmos uns com os outros? O que é o andar se não podemos traçar nossos próprios caminhos, para buscar o que desejamos, para explorar o mundo que nos cerca? O que é o aprender sem uma visão crítica, sem viver a aventura fantástica da construção do conhecimento? E criar, aplicar o que sabemos, sem as amarras dos treinos e dos condicionamentos ?

Daí a necessidade de uma aproximação cada vez maior entre os empreendimentos das áreas de atendimento às pessoas com deficiência e os que derivam da utilização de recursos tecnológicos. A proposta é de um encontro dessas áreas, que ao integrar seus conhecimentos, buscando complementos e interfaces umas nas outras, poderão convir melhor às pessoas que temporariamente estejam necessitando de recursos especiais para viver.

A ciência tem sido uma grande parceira dos movimentos sociais que atuam no sentido de criar condições propícias à educação e aos suportes de toda a ordem que a pessoa com deficiência necessita, para ultrapassar suas incapacidades e melhorar sua qualidade de vida como um todo.

Mas, insistimos, isto só não basta. Essa parceria não tem sido suficiente para enfrentar situações que envolvem a marginalização e o isolamento das pessoas com deficiência, ou seja, a exclusão por razões de ordem política, social, econômica e cultural.

Para garantir a todas as pessoas , indistintamente, uma vida de qualidade e para que todos possamos compartilhar dos avanços científicos e tecnológicos de uma dada época, a sociedade precisa estar fundada em princípios de igualdade, de interdependência e reconhecer e aceitar a diversidade humana, em todas as suas manifestações. Em uma palavra, precisamos somar competências, produzir tecnologia, aplicá-la à educação, à reabilitação, mas com propósitos muito bem definidos e a partir de princípios que recusam toda e qualquer forma de exclusão social e toda e qualquer atitude que discrimine e segregue as pessoas, mesmo em se tratando das situações mais cruciais de apoio às suas necessidades.

Não excluir ninguém

De fato, a exclusão social é uma realidade, mesmo quando as pessoas estão devidamente apoiadas pelos avanços da tecnologia aplicada à educação e à reabilitação.

Por outro lado, sabemos que incluir não é simplesmente inserir uma pessoa na sua comunidade e nos ambientes destinados à sua educação, saúde, lazer, trabalho. Incluir implica acolher a todos os membros de um dado grupo, independentemente de suas peculiaridades; é considerar que as pessoas são seres únicos, diferentes uns dos outros e, portanto, sem condições de serem categorizados. Já é tempo de reconhecermos que todos estamos juntos e nascemos neste mundo e que por isso mesmo não podemos excluir ninguém e convidar a que se aproximem os que estão à margem, pelos mais diferentes motivos, entre os quais os portadores de incapacidades físicas, intelectuais, sensoriais, sociais.

O movimento inclusivo surgiu nos anos 90 e preconiza a inserção incondicional de todas as pessoas como princípio aplicado ao atendimento escolar, clínico, ocupacional, laboral. Trata-se de um movimento que veio se contrapor, nas áreas da reabilitação e da educação, ao que se conhece como teoria do meio menos restritivo possível, na qual se baseiam os serviços segregados de reabilitação e de solicitação do desenvolvimento em seus diferentes aspectos, inclusive o escolar.

A teoria do meio menos restritivo possível fundamenta a educação especial e todos os atendimentos de apoio mais comumente disponíveis para as pessoas com deficiência. Nessa concepção, a inserção da pessoa é condicionada às possibilidades de a pessoa corresponder às expectativas e exigências de um ambiente considerado regular, normal, no qual a maioria dos indivíduos consegue se adaptar.

A inclusão é, portanto, um conceito revolucionário, que busca remover as barreiras que sustentam a exclusão em seu sentido mais lato e pleno. Aplica-se a todos os que se encontram permanente ou temporariamente incapacitados pelos mais diversos motivos, a agir e a interagir com autonomia e dignidade no meio em que vivem.

O desafio da inclusão para os profissionais que atuam a serviço da melhoria da qualidade de vida humana é projetar artefatos e lançar propostas que não se destinam apenas a um grupo restrito de pessoas. A intenção deixou de ser a de “homogeneizar” soluções e de apresentá-las previamente definidas e estabelecidas em função de casos particulares. Assim sendo, a inclusão nos leva a avançar mais, dado que para atender a seus preceitos temos de atingir situações de equilíbrio geral, as grandes e tão almejadas soluções que atingem fins qualitativamente mais evoluídos.

O caso da acessibilidade, por exemplo, entendida como: a possibilidade de utilização, com segurança e independência de edificações, espaços urbanos e mobiliários por pessoas com deficiência, ilustra bem o efeito da inclusão sobre as concepções arquitetônicas. A inclusão é uma motivação para que arquitetos , urbanistas, engenheiros tracem seus projetos, segundo os preceitos do chamado “Desenho Universal”. Esse novo conceito visa atender às necessidades de homens, mulheres, crianças, velhos, moços e abrange aspectos antropométricos, ergonométricos, pois procura desenhar ambientes em que as pessoas possam se acomodar, independentemente de suas medidas – altos, baixos, gordos, magros, em diferentes posições sentados, em pé… Aplica-se também aos sistemas em que os produtos possam ter peças opcionais, intercambiáveis, de modo que permitam o uso de acessórios para atenderem a necessidades emergentes de pessoas com diferentes necessidades.

O Desenho Universal não é, pois, uma concepção arquitetônica unicamente dirigida a pessoas com incapacidades. Os projetos assim delineados obedecem a padrões estéticos podendo ser bonitos, atraentes e muitas vezes lúdicos; os produtos devem, acima de tudo, visar ao bem-estar e autonomia das pessoas em geral.

Ao provocar uma “virada” na maneira de se engendrar projetos em todas as áreas do conhecimento e no modo pelo qual nos relacionamos conosco mesmos e com os outros, esse novo paradigma toca também o terreno dos relacionamentos científicos entre si e com outros campos da atividade humana.

Articulando saberes

Normalmente, ao idealizarmos e construirmos projetos de trabalho em favor de pessoas com deficiência, propomos a justaposição de contribuições, oriundas de áreas diferentes do conhecimento. Acontece o que já nos é tão costumeiro, ou seja, a multidisciplinaridade.

No encontro entre as tecnologias e a educação, pretendemos que as discussões promovam a fusão entre essas duas áreas e tendam para um espaço interdisciplinar entre ambas, que sintetize suas proposições e atuações e que, concretamente, possa redimensionar e redirecionar nossas produções.

Fusão não é justaposição, assim como o verde não é o azul listrado de amarelo!

Buscamos uma interconectividade entre esses campos conceituais e a superação de um processo histórico de fragmentação do conhecimentos e de suas aplicações no âmbito reabilitacional e educacional. O tangenciamento dessas áreas e de seus saberes disciplinares certamente poderão nos aproximar mais e mais da compreensão da complexidade humana.

Queremos, contudo, deixar claro que essa tendência à inclusão não nos remete à globalização, ao Mesmo, ao Universal – cânones neoliberais. Em uma fala sobre inclusão, o líder Shafik Abu do movimento Novas Vozes Africanas, nos lembra que (…) “somos um, mesmo sabendo que não somos os mesmos.”

Trata-se, então, de incluir, mas reconhecendo as diferenças, a multiplicidade dos saberes e das condições sobre as quais o conhecimento é aplicado e de transitar por novos caminhos, estabelecendo teias de relações entre o que se conhece e o que se há de conhecer, nos encontros e nas infinitas combinações desses conteúdos disciplinares.

Uma escola para todos

Na educação escolar, a inclusão veio revolucionar o sistema organizacional e as propostas curriculares vigentes.

A meta da inclusão escolar é transformar as escolas, de modo que se tornem espaços de formação e de ensino de qualidade para todos os alunos. A proposta inclusiva nas escolas é ampla e abrangente, atendo-se às peculiaridades de cada aluno. A inclusão implica mudança de paradigma, de conceitos e posições, que fogem às regras tradicionais do jogo educacional, ainda fortemente calcadas na linearidade do pensamento, no primado do racional e da instrução, na transmissão dos conteúdos curriculares, na seriação dos níveis de ensino.

Para que as escolas sejam verdadeiramente inclusivas, ou seja, abertas à diversidade, há que se reverter o modo de pensar, e de fazer educação nas salas de aula, de planejar e de avaliar o ensino e de formar e aperfeiçoar o professor, especialmente os que atuam no Ensino Fundamental. Entre outras inovações, a inclusão implica também uma outra fusão, a do ensino regular com o especial e em opções alternativas/aumentativas da qualidade de ensino para os aprendizes em geral.

As escolas ainda resistem muito à inclusão, no sentido pleno e total, que engloba todos os alunos, sem exceção, entre os quais os que são ou estão mais severamente prejudicados. Mas há muitas que já estão aderindo à idéia e modificando seus procedimentos, incrementando seus projetos de ação, aprimorando o trabalho de suas equipes pedagógicas para incluir, incondicionalmente, todos os aprendizes em suas salas de aulas, porque é justo e desejável agir assim.

O que estamos conseguindo, a duras penas, implementar no ensino escolar público, fundamentados em estudos e pesquisas do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade – LEPED, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas /Unicamp, em parceria com outros centros nacionais e internacionais da área, tem origem nesta concepção revolucionária e fascinante, que é a inclusão escolar.

Nossas propostas rompem com as práticas escolares dominantes e apontam para a necessidade de o processo ensino/aprendizagem ser banhado na riqueza, na subjetividade, nas diferenças e no dinamismo das transformações que ocorrem na vida, dentro e fora das escolas, quando entendemos que o conhecimento é produzido no caldo do cotidiano e inventado no encontro dos saberes e dos fazeres dos que o constroem, com suas mães e com suas mentes.

Comungamos com Michel de Certeau(2), que no seu modo sutil e subversivo de analisar o cotidiano nos faz ver como as práticas escolares são transgredidas, reinventadas, pelas artes de fazer e de viver de seus membros, ou seja, como podemos caminhar pelas brechas que o próprio sistema educacional esconde na sua ordem aparentemente impenetrável.

Os frutos que estamos colhendo do esforço conjunto de pesquisadores que congregamos no LEPED são animadores, embora provoquem muita polêmica, pois a educação brasileira é tradicional e fechada em suas posições. Estamos demonstrando que as transformações na escola são possíveis e até mais simples do que contrariamente se imagina.

E, finalmente…

Temos participado de muitos momentos de aproximação e de integração de conhecimentos entre as ciências humanas e exatas, em conseqüência do que estamos promovendo anualmente na Unicamp, para estimular a discussão e o entrelaçamento de projetos acadêmicos, tecnológicos e educacionais e para discutir com as Universidades e Associações para pessoas com deficiência o uso de recursos tecnológicos, que visam melhorar a vida dessas pessoas, diante dos reclamos da inclusão social. Estamos nos referindo aos “Encontros Unicamp de Mobilidade e Comunicação Alternativa/Aumentativa – ECMAA”, que há três anos estão sendo promovidos através de uma parceria do LEPED/Unicamp com os Departamentos de Automação Industrial e de Engenharia Biomédica da Faculdade de Engenharia Elétrica. da Unicamp.

A intenção é que nesses Encontros a interpenetração de nossos conhecimentos seja estimulada, num esforço interdisciplinar de cooperação técnico-científica e humanitária.

Esses contatos têm destacado o empenho e a dedicação de engenheiros, médicos, paramédicos, educadores, alunos dos cursos de graduação e pós-graduação no sentido de direcionar seus empreendimentos para o paradigma inclusivo.

A diversidade humana está sendo cada vez mais reconhecida e valorizada por esses profissionais e considerada como condição primeira para a implementação de seus arrojados projetos. São nessas e em outras ocasiões similares que constatamos o peso e a importância da diversidade como fim e meio pelos quais aprendemos mais sobre nós mesmos e sobre os outros.

NOTAS

* Maria Teresa Mantoan é doutora em Psicologia Educacional pela Unicamp. e leciona nos cursos de graduação e de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade LEPED/ Unicamp.

1. Texto publicado em Espaço: informativo técnico-científico do INES, nº 13 ( janeiro-junho 2000), Rio de Janeiro: INES, 2000, pp 55-60.
2. Trata-se de “A invenção do cotidiano” : 1.artes de fazer. Petrópolis/RJ:Vozes, 1994.

Fonte: Banco de Escola

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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