Mercado de Trabalho

Além das cotas

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Sobram profissionais com deficiência bem preparados para assumir posições maiores nas empresas. O que falta é o mercado enxergá-los

A paulista Kátia Antunes Marques tem mestrado em estatística pela Universidade de São Paulo (USP). No entanto, cansou de receber ligações com ofertas de emprego de 500 reais por mês. Kátia Antunes Marques é cega. O caso, contado no livro Cotas: Como Vencer os Desafios da Contratação de Pessoas com Deficiência (editado pela i.Social), lançado no ano passado por Andrea Schwarz e Jaques Haber, ilustra bem a realidade do mercado atual: de um lado, portadores de deficiência bem preparados e capacitados, do outro, empresas com vagas na base da pirâmide. O discurso corporativo, porém, vai contra essa afirmação. A maioria argumenta que não há mão de obra qualificada e que investir em treinamento para esse pessoal não compensa, já que, cobiçado pelas empresas que temem as multas pelo não preenchimento da Lei das Cotas, o funcionário com deficiência não pensa duas vezes na hora de trocar de emprego. A alta rotatividade pode até ser verdade, o que faz com que os salários de pessoas com deficiência estejam 13% acima da média nacional.

No entanto, quando o assunto é qualificação, a conversa é outra. O censo do IBGE revelou que, em 2000, as pessoas com deficiência com 12 ou mais anos de estudo eram 1,55% do total, enquanto entre as pessoas sem deficiência esse percentual caía para 1,07%. “Passada uma década, possivelmente o número de pessoas com deficiência com 12 ou mais anos de estudo já aumentou”, diz Maria Nivalda de Carvalho Freitas, professora da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), cuja tese de doutorado foi sobre a inserção de pessoas com deficiência em empresas brasileiras. A percepção é real. Só no banco de dados da consultoria i.Social, 70% dos 18 000 profissionais cadastrados têm, pelo menos, o Ensino Superior completo. A consultoria tem cerca de 200 vagas para deficientes abertas a cada mês, sendo 30% delas para supervisores, coordenadores ou gerentes. Na Page PCD, divisão recém-criada na Michael Page para recrutar pessoas com deficiência, o panorama não é diferente. Criada a partir da demanda das empresas clientes do grupo Michael Page por pessoas com deficiência, a nova divisão tem uma base de dados composta por mais de 12 500 candidatos, 54% deles com nível superior e 5% com pós-graduação. Segundo Danilo Castro, diretor da Page PCD, porém, 60% da demanda das companhias corresponde a vagas na base da pirâmide, 20% a cargos de especialista e somente 20% a posições de coordenação ou gerência. “Falta às empresas mudarem o olhar”, afirma a professora Maria Nivalda. “É preciso abandonar os processos de seleção exclusivos para pessoas com deficiência; a seleção deve ser para determinada vaga, não importando quem é o candidato.”

As distorções nesse mercado se intensificaram a partir de 2004, com a mudança da Lei de Cotas, que estabeleceu critérios mais rígidos para definir o que eram deficiências, excluindo as mais leves. “As pessoas são qualificadas, mas por causa da Lei das Cotas as companhias acham melhor contratar dez cabeças ganhando 500 reais cada que uma cabeça ganhando 5 000 reais”, lamenta Kátia Marques. Para a professora Maria Nivalda, as distorções têm mais a ver com o desconhecimento do RH, que precisa deslocar o olhar da deficiência para a necessidade de adequação das condições de trabalho e cobrar desempenho desses profissionais como cobra dos outros. “Entrevistei gerentes que diziam sentir culpa se tivessem de chamar a atenção de um profissional com deficiência”, diz.

Para quem ainda não se convenceu de que há, sim, profissionais com deficiência bem capacitados e qualificados, vale conhecer as histórias de Afonso Junqueira Franco de Melo, Flávio dos Santos Galo, Oswaldo Nardini e Sérgio Faria. Em comum, os quatro têm boa formação e encontraram empresas que valorizam mais o currículo que o mero preenchimento de cotas — como Kátia Antunes Marques. A propósito, a moça, de 27 anos, que a cada oferta de emprego de 500 reais perguntava ao RH do outro lado da linha “Mas você tem o meu currículo em mãos?” hoje trabalha no Itaú- Unibanco. Ela e seu cão-guia Sam. “Sou analista de política de crédito, estou na área em que me formei, posso aplicar os conhecimentos que recebi na graduação e no mestrado”, comemora.

Tive paralisia infantil aos 7 meses, doença que deixou sequelas na minha perna esquerda e em parte da direita. Por isso faço uso de aparelho ortopédico e bengala de apoio. Comecei a trabalhar aos 15 anos, como engraxate em Piracicaba, antes de vir para São Paulo para estudar. Aqui fiz concurso para a Eletropaulo, que ainda era estatal, e atuei como operador de central de atendimento e auxiliar administrativo da diretoria, até que decidi deixar a empresa para procurar um estágio. Cursava Direito e fui estagiar num escritório, que presta serviços a seguradoras. Me formei, ajudei a implantar o escritório no Rio de Janeiro, junto com meu chefe e outra advogada, mas logo quis voltar para São Paulo. Fui trabalhar como advogado pleno na Generalli Seguros. Um dia vi um anúncio da Aliança buscando pessoas com deficiência. Tive dúvidas em mandar um currículo, imaginei que a oferta fosse somente para vagas mais baixas. Fiquei uma semana pensando no assunto, até que mandei o currículo e fui chamado para entrevistas com o diretor administrativo e o presidente da empresa. Entrei na Aliança pela Lei das Cotas, dentro da parcela que a empresa precisa cumprir, no cargo de advogado sênior. Em três anos e meio na companhia já atuei também como gerente do departamento de contencioso e, hoje, sou assessor do superintendente. Aqui sou cobrado normalmente, como qualquer outro funcionário, e a deficiência física não me impede de viajar bastante a trabalho. Acredito que a Aliança investe em mim. Afinal, a empresa está subsidiando parte do MBA em Gestão Estratégica.”

“Sou deficiente auditivo. Tenho uma deficiência acima do nível considerado moderado, bastante significativa, em ambos os ouvidos, que me obriga a usar aparelho. Meu problema se agravou a partir dos 40 anos, quando eu já havia tido passagens por grandes empresas. Mas minha carreira não sofreu nenhum revés por causa da deficiência. Já atuei como gerente na Unilever, na Natura e na Embraco. Eu não coloco a deficiência no currículo. Só informo se estiver preenchendo um daqueles formulários nos sites das empresas e isso for perguntado. Na Camargo C
orrêa, onde trabalho há quase dois anos, concorri à vaga de gerência normalmente. Depois de estar aqui é que me ofereci para fazer parte da cota de pessoas com deficiência que a empresa tem de contratar para cumprir a lei. Isso não significa, porém, nenhuma condescendência por parte dos meus superiores. Sou cobrado como todos os gerentes, tenho metas a cumprir como qualquer outro. Embora as companhias em que trabalhei nunca tenham feito nenhuma distinção pela minha deficiência, às vezes percebo que as pessoas não sabem lidar com o deficiente auditivo, já que não é uma deficiência visível. Algumas vezes o pessoal não tem paciência para repetir algo. Em locais de muito barulho, por exemplo, eu preciso recorrer à leitura labial. Situações coletivas, como reuniões de grupos, são bastante difíceis para mim, exigem um nível de atenção muito alto. Se eu fechar os olhos não ouço nada. O aparelho auditivo auxilia, mas é também uma fonte de ruídos imensa. Tem deficiente que entra em depressão por causa do aparelho.”

“Meu caso começou com uma injeção mal aplicada, aos 2 anos de idade, que atingiu o nervo ciático. A partir daí, a perna direita deixou de evoluir. Passei por 17 cirurgias para tentar corrigir o problema, sem sucesso, e hoje uso aparelho ortopédico e bengala. Entrei para o banco Itaú aos 18 anos. Lembro que, na época, uma outra realidade, precisei que o gestor da área em que iria atuar concordasse que eu tinha condições de desempenhar minhas funções apesar da deficiência. No Itaú-Unibanco, passei por três níveis de escriturário, fui chefe de serviço, chefe de seção e analista de crédito e cobrança chefe, até ganhar minha primeira gerência, de política de crédito, em 2003. Dois anos depois assumi o cargo atual. Lembro que, em duas dessas promoções, concorri com outros funcionários do banco, pessoas sem deficiência. Vivo com aquele pensamento de que o deficiente sempre tem que provar que é melhor. É uma coisa minha, não do banco, mas que me faz ultrapassar limites. Já liderei equipes de mais de 100 pessoas, quando a informatização dos processos era menor. Hoje tenho cinco funcionários na minha equipe. Aqui sempre encontrei apoio nos meus gestores e meu MBA foi integralmente pago pela empresa.”

“Tenho deficiência visual total desde os 2 anos de idade. Não tenho globos oculares e uso próteses. Ingressei na Accenture em 1998. Era analista sênior, responsável pelo comércio exterior de uma indústria de alimentos quando a área de TI dessa empresa foi absorvida pela consultoria, num processo de outsourcing. Não fui contratado por causa da Lei das Cotas, mas vim para Accenture com outros 200 funcionários da indústria de alimentos. Aqui, também comecei como analista sênior e, ao longo da minha carreira, fui alocado em diferentes projetos. Já comandei equipes de duas a dez pessoas. Um dos projetos que liderei foi bem interessante porque era completamente visual. Tínhamos mapas e um sistema que traçava rotas para entregas de pedidos. Nessa hora, o deficiente visual aprende o que eu chamo de voar por instrumentos. Eu não posso enxergar a tela do computador, mas posso atuar como um chefe a distância. Cobro resultados e questiono os profissionais sobre como chegaram a eles — é só fazer as perguntas certas. Há três anos participei da criação do Programa de Diversidade Accenture, ajudando a orientar a companhia em relação às necessidades de infraestrutura e tecnologia específicas dos deficientes visuais e em como capacitá-los, além de auxiliar nas licitações para a compra de softwares de voz. Fui, até mesmo, convidado a integrar a equipe do programa, mas preferi continuar tocando meus projetos como consultor.”

Fonte: http://revistavocerh.abril.com.br/

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

Um comentário sobre “Além das cotas

  • Sou deficiente técnica de enfermagem PCD com experiencia. E não consigo arrumar emprego na lei de cota.
    Fiz concurso de nova Iguaçu e não chamaram nem um deficiente, sabe pq eles não ganha nada para dar emprego ao deficiente. fiz concurso na oSs Viva rio esta foi a pior de todas. Fiz concurso na oSs do HOSPITAL AZEVEDO LIMA a enfermeira me chamou de burra e com menos de 90 dias fui demitida. E kd alguém órgão que proteja o PCD. Estamos sem emprego e kd nossas cotas!!!!!

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