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Em biografia, Yuka fala sobre a tentativa de homicídio que o deixou paraplégico

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Em “Não se Preocupe Comigo”, o compositor Marcelo Yuka, ex-baterista da banda O Rappa, conta sua trajetória, das artes à política.

“Neste livro vemos um país duro, muito pouco solidário; pessoas com o ego à flor da pele, o lado ruim da fama, a embriaguez do sucesso, os derrotados pelo êxito”, escreve o romancista Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus” no prefácio à edição.

O livro foi escrito em depoimento ao jornalista, poeta e produtor musical Bruno Levinson, autor de “Vamos Fazer Barulho! Uma Radiografia de Marcelo D2” e criador do festival Humaitá pra Peixe.

Abaixo, leia um trecho de “Não se Preocupe Comigo”

 

Eu me via explodindo

“O dia era 9 de novembro de 2000. Não lembro que horas acordei. Passei a tarde em casa com o Lauro, o baixista d’O Rappa. De noite, tinha combinado de ir com o Ed Motta ao show do Max de Castro. Eu ia buscar o Ed e a mulher dele, Edna, e convidei o Lauro a nos acompanhar. Ele estava amarradão para ir, mas recebeu um telefonema em cima da hora e acabou desistindo. Salvou-se. Eu lembro que o meu irmão Renato tinha ido até a minha casa pegar meu carro emprestado. Poucas horas antes de mim, havia passado pela mesma rua em que eu seria alvejado, a José Higino.

Eu vivia uma época maravilhosa, cheio de planos e empolgado com tudo o que estava rolando. Fazia muitas coisas ao mesmo tempo. Estava feliz porque minha carreira começava a alçar voos para além d’O Rappa. O compromisso marcado para aquela noite era muito simbólico. Eu tinha acabado de fazer uma música com o Max, e eu, ele e o Ed estávamos empolgados com a ideia de compor a seis mãos.

Fazia pouco tempo que eu havia voltado da Europa – tínhamos ido fazer um show d’O Rappa por lá. Fui antes do restante da banda e voltei depois. Fiquei muito tempo viajando, sem parar um dia. Quando voltei para o Brasil, já emendamos em uma turnê com o Skank pelo Nordeste. Depois disso também não voltei para casa. Aluguei um bugre e viajei largado, curtindo. Ouvia praticamente só uma canção, do Jimi Tenor, com orquestra. Chama-se “Call of the Wild”, como o romance de Jack London.

O importante é que eu estava extremamente feliz. Sabia que ia diminuir as tensões com O Rappa, porque a minha posição seria: “Vocês não querem mais as minhas canções? Beleza, tenho outro canal para me expressar.” Com certeza isso iria melhorar as coisas. Não pensava em sair, mas em compor com outras pessoas, levar adiante outros projetos. A energia da minha felicidade, naquele momento, era também a possibilidade de construir uma nova relação com O Rappa.

Era o meu momento de ver o mundo, conhecer outras culturas. Eu tinha ido ao Marrocos e a Portugal. Também fiquei um tempo com o Manu Chao em Barcelona. A gente tinha desenvolvido uma amizade, e eu fiquei muito impressionado com a cidade. Meus planos eram retornar e ficar mais por lá. Eu ainda estava descobrindo toda uma cultura de rua, e isso me ligou muito ao Nordeste. Fotografei o grafite e muitas outras formas de arte de rua. Estava borbulhando dessa conexão entre o Norte da África, a influência dos mouros na Europa e o Nordeste do Brasil. Costumo engravidar de ideias. Estava então com nove meses, pronto para parir.

Lembro que estava sol. Olhava para a cidade e via um céu muito bonito. Eu e o Max já tínhamos composto “Os óculos escuros de Cartola” e havia aí uma nova possibilidade. Já tinha criado em parceria com outras pessoas de fora d’O Rappa, mas, com o Max e com o Ed, sentia que era para ser diferente. Eu estava me inteirando dessa afinidade musical que nós temos. Sabia que iríamos longe juntos.

Só tinha sido assaltado uma vez: eu era pequeno e uns caras de moto levaram um reloginho Casio. Nunca tive essa paranoia da violência, sempre confiei no meu propósito. De alguma maneira, ainda mantenho certa ingenuidade. Eu era bem-intencionado, fazia trabalhos sociais relevantes e nem passava pela minha cabeça que cara assim pudesse sofrer com a violência. Por conta do projeto que eu realizava no Dona Marta e do meu encontro com Marcinho VP, dei início a uma pesquisa para entender o que eu chamo de “bandidagem”. O que ocorre de fato? Como o “outro lado” pensa? Passei por situações tensas nesses lugares, mas nunca achei que pudesse acontecer alguma coisa comigo. Comigo, não! Nunca fui usuário de drogas, nunca aceitei favor de bandido. Eu entrava e saía do morro tranquilamente. Passava por barreiras policiais sem medo. Deixava o morro às três da manhã, entrava num carro caro para aqueles padrões e, mesmo que houvesse uma “dura” no pé do morro, saía sem problemas. Eu confiava tanto no meu propósito que achava que estava imune.

Quando chegou a hora de sair de casa para buscar o Ed e a Edna, botei uma camisa confortável, presente da Samantha, minha grande amiga, hoje casada com o produtor Mario Caldato, entrei no carro e liguei o som na mesma música. Mais uma vez estava ouvindo “Call of the Wild”. Sozinho. Fui saindo, amarradão.

Quando ia a Paraty, costumava usar umas botas para andar nas pedras e poças. Eu gostava de pisar nas poças, e as botas me davam a sensação de que nada podia acontecer comigo. Tinha colocado pneus novos no carro, e eles me proporcionavam essa mesma sensação. Era até meio ruim, porque o carro fazia barulho e quicava muito. Mas os pneus me davam essa impressão de segurança, de poder. Eles podiam passar por qualquer terreno, encarar buracos e me levar a qualquer lugar! Eu tinha o maior orgulho deles. O carro podia ficar sujo, os pneus, não.

Fui descendo a ladeira como se estivesse andando de skate. Fui indo, curtindo muito o meu carro, os pneus, a música, meu momento, o fato de estar indo ao show do Max e a ideia de buscar o Ed. Passei pela pracinha e fui embora.

Acelerei e, no que virei para entrar na rua José Higino, pensei: “Caralho, mano!” Vi, lá na frente, um carro atravessado, praticamente fechando a passagem. Estavam rolando tiros. Ouvi vários pipocos! Vários! Fiquei chocado não só com o carro bloqueando a rua, mas com aqueles que ainda seguiam adiante, no meu fluxo, e passavam pelos tiros. Loucura! Eu fui o único alvejado, mas muitas outras pessoas também poderiam ter sido. Sorte delas. Eu parei. “Caralho, o que eu faço?”, pensei comigo. Eu tinha acabado de virar a esquina e quis dar ré. Não sabia que havia outro carro com bandidos bem atrás de mim. Não tinha visto. Fui informado depois que iam assaltar uma moça que saía de uma garagem que estava em frente ao meu carro. Havia uma situação ali. Depois disseram que eu tentei salvar essa moça. Nada disso – eu estava tentando era me salvar. Não sou esse herói que quiseram pintar. Eu a salvei, sim, mas foi sem querer. Parei bem na frente do carro de onde vieram os tiros que me alvejaram. A bala que atingiu a minha coluna veio de trás. Eles devem ter se assustado com meu carro dando ré, uma picape Hilux, e desistiram do assalto. Passei a ser o foco. Largaram o dedo em cima de mim! Fui atingido na coluna e perdi a força. Meu carro deu um tranco e acabou batendo. Soube mais tarde que um dos caras saiu do carro da frente para me dar o “confere” final. Ele foi alvejado por alguém da rua, possivelmente um segurança local. Esse bandido foi o único encontrado morto, no porta-malas de uma Blazer preta.

Na hora, foi tudo muito rápido e sem sentido. Não foi uma tentativa de assalto nem nada. Não me pediram nada, não falaram nada. Foram só tiros. Até hoje não sei por que tantos – 22, dos quais nove me acertaram. O delegado Orlando Zaccone, meu amigo, acha que esse segurança da rua deve ter trocado tiros com eles, que, por sua vez, concluíram que os disparos tinham partido de mim. Então eles vieram para me assassinar.

Todo assalto começa com um anúncio: “Eu quero! Eu vou tomar isso de você, não tente nada.” Mas não foi assim. Senti que a minha vida estava em risco. A minha reação de tentar dar marcha a ré pode ter sido em função disso. Porque, num assalto, você sabe o que eles querem e o que você tem que dar. Em uma tentativa de assassinato, não. Eu não tinha como dar o que eles queriam. A sensação foi: estão me matando.

Eu me lembro bem de tudo o que aconteceu. O primeiro tiro quebrando o vidro, meu braço esquerdo explodindo e um caco de osso no teto, com um pouco de nervo ou carne, não sei. A gente vê filmes com cenas de trocas de tiros: a bala sai de um lugar e vai para outro, o jogo de câmeras mostra o sentido que a bala percorreu, existe um cara atirando naquele outro. Só que para mim foi bem diferente. Minha visão não era como se as balas estivessem vindo de lá para cá – parecia que eu estava explodindo de dentro para fora. Eu me via explodindo.”

Fonte: Livraria da Folha

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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