Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação – Parte 3
Caro leitor,
Veja hoje a segunda parte do artigo “Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação” dos pesquisadores Antônio Álvaro Soares Zuin e Deborah Christina Antunes, ambos da Universidade Federal de São Carlos.
Do bullying ao preconceito
Voltando à afirmação de Adorno da epígrafe, pode-se compreender agora que ela não foi citada em vão, uma vez que se considera, afinal, que se vive em uma época na qual a barbárie é a condição de existência da própria sociedade capitalista. Trata-se de uma condição que precisa ser mudada e, com ela, a própria lógica social. Assim, desbarbarizar num sentindo amplo não é meramente evitar comportamentos agressivos, admitidos por Adorno (1971/2003) como legítimos em determinados momentos. Para ao menos amainar as práticas bárbaras é necessário refletir a respeito da violência contida no próprio processo civilizatório, processo que, embora tenha produzido avanços científicos e tecnológicos, tem mantido exatamente esta cultura repressiva que possibilita sua reprodução nos e pelos indivíduos submetidos a ela (Adorno, 1971/2003).
Está claro, e até mesmo os pesquisadores do bullying admitem, conforme apresentado inicialmente, que na ocorrência da violência discutida aqui estão envolvidos aspectos culturais (sociais, políticos e econômicos) e individuais.
No entanto, é importante ressaltar que, de acordo com o referencial aqui utilizado, tais fatores devem sim ser analisados, problematizados e interpretados, pois não basta mencioná-los. Assim, os fatores individuais fazem referência ao desenvolvimento da personalidade nesse ambiente, e os culturais, além de se referirem à sociedade que limita o desenvolvimento em uma direção específica, também se referem às condições objetivas da incidência dessa violência de uma pessoa para com a outra. Ora, o bullying, tal como conceituado, não é, de maneira alguma, uma simples manifestação da violência sem qualquer fator determinante. Na verdade, o bullying se aproxima do conceito de preconceito, principalmente quando se reflete sobre os fatores sociais que determinam os grupos-alvo, e sobre os indicativos da função psíquica para aqueles considerados como agressores.
Essa proximidade leva à hipótese de que o que atualmente tem sido denominado bullying é um fenômeno há muito conhecido pela humanidade, mas que ganhou nova nomeação pela ciência pragmática que se ilude ao tentar controlá-lo via classificação e aconselhamentos. Somando-se a isso, sua assimilação torna-se imediata numa sociedade que se pretende cinicamente cosmopo lita (sem sê-lo de fato), pois o que assusta e fere a moral burguesa, hegemônica em nosso tempo, é a forma como tem se manifestado no ambiente escolar e as conseqüências que têm trazido, e que tem como exemplos mais extremos os suicídios e os ataques armados à comunidade que resultam em pessoas feridas e mortas.
Defendendo essa hipótese, de que se trata, novamente, ou ainda neste momento histórico, do preconceito existente em sociedades e culturas pretensamente democráticas, mas na realidade autoritárias, torna-se importante apresentar agora o conceito de preconceito referido aqui, bem como os seus determinantes. Este conceito foi trabalhado por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sandford (1969) quando do estudo que se denominou “A personalidade autoritária”, que teve por objetivo buscar as raízes psicológicas do anti-semitismo, e envolve Teoria Crítica e Psicanálise.
A aproximação entre essas duas vertentes teóricas é, segundo Rouanet (1998), não caracterizada como uma influência da psicanálise em relação à Escola de Frankfurt, mas uma “interioridade constitutiva”. Assim, a psicanálise habita o próprio corpo teórico da Teoria Crítica permitindo a ela pensar seu objeto, a si mesma, e mesmo a psicanálise freudiana, como um momento da cultura. A Teoria Crítica engloba o marxismo, pela conservação da crítica ao fetichismo da mercadoria, e a psicanálise como ciência do indivíduo desmistificadora que, assim como o materialismo histórico, considera que “o que é alegado como motivo manifesto é um mero pretexto que oculta as verdadeiras correlações e as suas causas reais” (Rouanet, 1998, p. 19).
Partindo desse referencial, o preconceito, de acordo com os psicanalistas Jahoda e Ackerman (1969), é caracterizado por “uma atitude de hostilidade nas relações interpessoais, dirigida contra um grupo inteiro ou contra os indivíduos pertencentes a ele, e que preenche uma função irracional definida dentro da personalidade” (p. 27). Somando a esta conceituação, Crochik (1995) atenta para o fato de que para que ele exista é necessário que se somem às características do indivíduo fatores de seu processo de socialização, e, embora a manifestação do preconceito seja individual, pois responde às necessidades individuais, ele “surge no processo de socialização, como resposta aos conflitos gerados neste processo” (Crochik, 1995, p. 15).
Assim, tendo como base o desenvolvimento infantil, conforme descrito e explicado por Freud (1905/1969), o processo de socialização, nessa sociedade, engendra a internalização da ideologia dominante, de acordo com Rouanet (1998):
A ideologia vai se enraizando no curso do processo de socialização, através das sucessivas privações pulsionais que a instância familiar, e posteriormente as outras instâncias2, vão impondo ao indivíduo. O processo pelo qual os diferentes objetos de amor vão sendo abandonados, no curso do desenvolvimento psicossexual, em que o indivíduo transita da fase oral para a fase genital, é acompanhado, em cada caso, de prescrições e proscrições, de imperativos éticos, de normas negativas e positivas, que correspondem, invariavelmente, aos valores sociais vigentes. (p. 23-24).
O desenvolvimento psicossexual culmina exatamente na constituição do superego quando, por meio da resolução do Complexo de Édipo, as leis, as normas e o sistema de valores vigentes, encarnados na figura paterna, são introjetados pelo sujeito. Deste modo, quando ele chega à fase adulta, tem a sociedade em si mesmo e apresenta-se adequadamente susceptível à obediência à autoridade que se encontra mascarada neste momento histórico em que a ideologia confunde-se com a própria realidade. Exatamente por isso, hoje, a crítica à ideologia constitui-se a partir da crítica à realidade (Rouanet, 1998).
Porém, a simples introjeção da ideologia, dos valores e normas de conduta, não garante uma equivalência entre os desejos individuais e os imperativos sociais, ao contrário, ocorre o que os autores da Escola de Frankfurt chamaram de “reconciliação forçada”, ou seja, uma reconciliação aparente entre tais desejos e imperativos sociais. É na medida em que esse antagonismo, entre os desejos do id e as normas da cultura, torna-se cada vez mais insuportável ao ego, que a agressividade para com o outro, mediada pela projeção como mecanismo de defesa, apresenta-se como a manifestação material do preconceito. O outro é visto como um estranho, mas, ao mesmo tempo, como aquele que seria capaz de realizar seus desejos sendo, aos olhos do sujeito preconceituoso, alguém capaz de assim realizar-se integralmente como indivíduo, e que por isso mesmo, por conta desse desejo de individuação impossibilitado de se realizar na sociedade massificada, lhe é familiar. Entretanto, mesmo isso
é uma ilusão, é como evidenciaram Adorno e Horkheimer (1969/1985), uma falsa projeção, pois o outro está tão culturalmente submetido e tão incapaz de realizar-se como indivíduo quanto àquele que manifesta o preconceito. Assim, a falsa projeção, como fundamento psíquico do anti-semitismo, e do preconceito de um modo geral, significa a incapacidade de o sujeito diferenciar no material projetado o que lhe é de fato característico e o que não é. De acordo com Amaral (1997), ela “não permite nenhuma discriminação entre o mundo exterior e a vida psíquica, nem o afastamento necessário ao processo de identificação que engendraria, ao mesmo tempo, a consciência de si e a consciência moral” (p. 40). É então um mecanismo por meio do qual o sujeito procura livrar-se dos impulsos que ele não admite como seus, por ter introjetado os valores autoritários da cultura, e que, embora lhe pertençam, os atribui – de maneira fantasiosa – ao outro. Tais comportamentos, desencadeados em situações em que esses indivíduos se percebem livres como sujeitos, parecem, além de letais às pessoas envolvidas, ser sem sentido, tal como as constatações dos pesquisadores que insistem em não interpretar. No entanto, a aparente falta de objetivo confere verdade à explicação de que isso se caracteriza como uma válvula de escape, uma raiva desencadeada contra aquele que, desamparado, chama a atenção (Adorno & Horkheimer, 1969/1985).
Ainda assim os grupos, ou mesmo os indivíduos isoladamente, alvos de preconceito, possuem certas características que determinam esse seu “destino”. Longe de serem culpados pela agressividade que é voltada contra eles, guardam estreita proximidade com os imperativos culturais: petulantes apresentam-se como sua antítese! Obviamente isso é uma ironia – a antítese retifica a norma vigente, fazendo parte de sua história e tendo um papel fundamental em sua conservação.
Ajudados pelo sentido do desenvolvimento econômico e seu papel dentro dele, pela dinâmica do desenvolvimento das religiões, das sociedades, dos ideais e padrões de beleza e comportamento, segundo Adorno et al. (1969), o objeto do preconceito deve ter características ou poder de ser definido em termos de características que se harmonizam com as tendências psíquicas daquele que manifesta o preconceito, tendências estas criadas socialmente. Algumas são racionalizações que não têm a ver com a realidade, outras expressam suas próprias fraquezas, o que gera estímulos psicologicamente adequados para a destrutividade. Deste modo, o caráter funcional do anti-semitismo fica evidente quando se percebe que o grupo contra o qual se volta parece ser acidental. O fato é que aqueles que sofrem mais ferozmente a pressão social frequentemente podem tender a transferir essa pressão para outros, que vistos como inimigos imaginários se tornam vítimas. Pode-se perceber então, que não é o preconceito, a barbárie por si própria, esta violência irracional, que desfigura a ordem social, ao contrário, é a ordem estabelecida atualmente que não pode resistir sem desfigurar os próprios homens, ou seja, sem barbarizá-los. A perseguição do outro, a repugnância compulsiva do inimigo imaginário, tem por essência a violência cotidiana que se faz manifesta contra tudo aquilo que não conseguiu se ajustar totalmente, ou que acaba por ferir as “certezas” sobre as quais o progresso se sedimentou. (Adorno & Horkheimer, 1969/1985).
A objetificação do processo social, sua obediência às leis supra-individuais intrínsecas, parece resultar em uma alienação intelectual do indivíduo para com a sociedade. Essa alienação é experienciada pelo indivíduo como desorientação, como medo e incertezas constantes. As atitudes agressivas, estereotipadas e irrefletidas, que caracterizam o preconceito, sejam elas físicas ou psicológicas, oferecem ao sujeito gratificações emocionais e narcísicas que tendem a quebrar as barreiras da autocrítica racional, ao mesmo tempo em que recrudescem a força do pensamento estereotipado. Tais gratificações podem ser o sentimento fugaz de poder e a identificação grupal, ou seja, a ilusão de uma alteridade que já não é garantida na sociedade administrada, que é, ela mesma, ideologia (Adorno et al., 1969). Além disso, segundo Adorno e Horkheimer (1969/1985), o que ocorre é um prazer na tentativa de destruir aquilo que incomoda, e é por isso que se mostra imune aos argumentos racionais sobre a inexistência de sua rentabilidade. Para os mesmos autores:
Se um mal tão profundamente arraigado na civilização não encontra sua justificativa no conhecimento, o indivíduo também não conseguirá aplacá-lo, ainda que seja tão bem intencionado quanto a própria vítima. Por mais corretas que sejam, as explicações e os contra-argumentos racionais, de natureza econômica e política, não conseguem fazê-lo, porque a racionalidade ligada à dominação está ela própria na base do sofrimento. Na medida em que agridem e cegamente se defendem, perseguidores e vítimas pertencem ao mesmo circuito funesto. (Adorno & Horkheimer, 1969/1985, p. 159).
Fonte: Revista Psicologia e Sociedade. vol.20 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2008
Texto completo:
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