Mila Guedes: “Com deficiência ou não, as pessoas precisam ser tratadas como normais”
Com doença de Stargardt, esclerose múltipla e com mobilidade reduzida, essa publicitária não se deixou abater e encabeça projetos importantes. Conheça a sua história.
A publicitária Mila Guedes, 47 anos, descobriu uma doença degenerativa nos olhos aos 19, esclerose múltipla aos 27 e tem mobilidade reduzida desde antes dos 40. Mas ela não se deixou abater, não. Conquistou o mercado de RH, se especializou nos Estados Unidos e hoje toca dois projetos paralelos: um, com dicas de bem estar e atividades culturais pra portadores de deficiências; e outro, de consultoria pra ensinar as empresas a recrutar essas pessoas da forma mais adequada possível.
“Os limites que temos na nossa cabeça realmente são limites, ou são fruto da nossa cabeça?”, é o que eu sempre pergunto. Nasci numa cidade chamada Tupi Paulista, interior de São Paulo, pertinho do Mato Grosso do Sul. A minha mãe já tinha esclerose múltipla avançada e faleceu quando eu tinha 7 anos, e quem me criou foi a irmã dela, a minha mãe Lea. Quando eu comecei a ir pra escola, percebi que tinha dificuldade pra enxergar. Não via direito o quadro, tinha dificuldade em saber qual era a professora que ia me dar aula, e quando ela falava, às vezes eu nem sabia quem era. Quando a professora pedia pra ler alguma coisa, eu queria morrer. Engasgava, empancava, e só conseguia com certa dificuldade.
Olhos, as janelas da alma
Lá em Tupi Paulista tinha um cinema que só funcionava aos fins de semana. Como eu adorava ir ao cinema, principalmente ver os filmes do Mazzaropi! Aliás, adoro até hoje. Só que quando o filme era legendado, eu não entendia nada e voltava frustrada pra casa. Preocupados, os meus pais passaram a me levar em médicos para descobrir o que eu tinha nos olhos. A dificuldade em diagnosticar era enorme! Aos 15 anos, me mudei pra capital, a fim de terminar os estudos e prestar vestibular. Quando cheguei em São Paulo, fiquei louca com todos aqueles cinemas e queria ir em todos, embora continuasse com a visão péssima. Frustrada, retomei minha busca junto aos médicos. Foi aí que um oftalmologista que dilatou mais vezes minha pupila descobriu que eu tinha uma degeneração macular, comum em pessoas idosas, com mais de 70 anos. Eu tinha 19 na época! Minha família ficou apavorada, sobretudo porque não entendíamos como aquilo tinha acontecido. Passei a frequentar uma terapeuta que colocava uma venda nos meus olhos e me ensinava exercícios para eu poder me virar sem enxergar. Cara, foi horrível! Eu não era cega, não queria aquilo. Fui umas três vezes e parei com aquele tratamento. Mas continuei procurando outros oftalmologistas pra entender mais sobre o desdobramento dessa doença. Até que um disse que eu não tinha degeneração macular, e sim doença de Stargardt, que é da mesma “família”, mas diferente. “Já tá melhorando, já estou sabendo mais sobre a doença”, pensei comigo mesma. E o que é essa degeneração de Stargardt? A minha mácula, que fica no fundo do olho, não se formou. Ela tem um buraco. Isso nos dois olhos. Eu perdi cerca de 80% da visão até 1993, quando a doença estagnou. Teria que aprender a viver com os 20% restantes. Entender o meu limite foi fundamental pra mim.
A descoberta
Quando eu tinha 23 anos, certa vez acordei com a perna direita e a parte superior do meu corpo dormentes. Imediatamente fui ao médico, que me deu um diagnóstico de estresse. Ele falou: ‘vai pra casa que essa dormência vai passar’. De fato passou, mas demorou três meses.
Em 1995 surgiu uma mega oportunidade de trabalho na Fischer & Justus. Imagina, eu, publicitária recém-formada, trabalhando numa das agências que mais bombavam naquela época! Fui, afirmei que não tinha nenhum problema de saúde… imagina se eles descobrissem que eu não enxergava, poderiam escolher outra pessoa. Em hipótese alguma ia permitir que isso acontecesse. Fiz tudo direitinho no processo de seleção e ganhei a vaga, sem nem cogitar contar pra alguém lá dentro sobre meu problema de visão.
Quando entrei na área de planejamento, a diretora de RH tinha um projeto interno de pesquisa e precisava de alguém pra ajudá-la. A diretora de planejamento, então, me “emprestou” pra área de RH pra desempenhar este papel. Me envolvi bastante e fui efetivada na vaga de Assistente de RH, sem contar pra ninguém que não enxergava direito. Sentia vergonha porque precisava aproximar muito o papel pra conseguir ler. Então, pra não dar bandeira, eu pegava tudo que precisava ler naquele dia, levava pro banheiro, lia e decorava tudo, e marcava o que era imprescindível. Aí voltava pra mesa e desempenhava meu trabalho.
Depois que fiquei mais próxima da minha diretora, ela percebeu que eu não enxergava muito bem. O que ela fez foi me dar uma lupa e uma tela de computador maior (risos). Aquilo foi essencial pra que eu perdesse o medo. Se a minha chefe me aceitava daquele jeito, não tinha mais o que temer. Até hoje acho que ela não sabe o bem que me fez, porque quando fiquei mais segura, meu desenvolvimento e desempenho aumentaram consideravelmente. Aos 27 anos, ela me falou pra eu ir a um geriatra. Oi? Naquela idade?
– “Isso mesmo, o quanto antes você for, mais saudável será sua velhice”, ela me dizia.
Ok, fui ao tal geriatra, e quando comentei com ele sobre minha visão e contei que minha mãe tinha esclerose múltipla, ele me pediu com urgência uma ressonância magnética do crânio. Ao receber o resultado, vimos que tinha um histórico de desmielinização. Vou explicar: a mielina é a membrana que envolve o cérebro, como se fosse um fiozinho encapado. Quando ele desencapa, na exposição ele interrompe o movimento do seu corpo. Pode ser o movimento dos membros superiores, inferiores, na voz, etc. No meu caso, gerava uma doença autoimune. E a minha era esclerose múltipla!
Nos limites, um aprimoramento
O geriatra me encaminhou para um neurologista amigo dele, que é o que me acompanha até hoje. Naquele momento não entrei com medicação, porque desde os 23 anos não tinha tido mais nada. Mas passei a acompanhar o processo. Em abril de 1999, lembro que era uma Páscoa, eu amanheci com as duas mãos dormentes. Era um surto! Elas ficam como se fossem inchadas, e até hoje, eu tenho a sensibilidade.
Sei o que é quente ou frio, pesado ou leve, mas fechar os botões de uma roupa, por exemplo, é muito difícil. Enfiar linha numa agulha, então, é impossível (risos). Em julho de 1999, o médico achou melhor começar a medicação e eu passei a tomar o Interferon. A minha doença é considerada benigna, mas cada vez mais eu percebi que eu fazia menos coisas com facilidade. Comecei um exercício de não deixar de fazer o que eu gostava. Só precisava fazer adaptações. Se subir escada estava se tornando difícil, quando ia viajar buscava sempre ficar por perto do elevador. Pra andar muito era complicado. Tinha que sentar, descansar, tomar fôlego. Então essas técnicas de me aprimorar dentro dos meus limites começaram a fazer parte do meu dia a dia.
Julinha, uma scooter viajada!
Eu queria ver Paris de cima. E quando cheguei no Arco do Triunfo, acho que tinha mais de 300 degraus pra eu subir. O que eu fiz? Fui até a Torre Eiffel, entrei no elevador e vi Paris de cima, do mesmo jeito! O segredo é arrumar outro jeito de você conseguir fazer as mesmas coisas. Isso foi muito importante e começou a fazer parte do meu dia a dia. Comecei a fazer muitas pesquisas. Por exemplo, quando fui a Nova York pela primeira vez, eu usava uma bengala. E ia até o Central Park, mas não conseguia vê-lo inteiro, pois não conseguia andar. Já na segunda vez que eu fui, fiz uso de uma scooter e, aí sim, consegui ver o Central Park inteiro! Não tive dúvida! Na viagem seguinte, andei novamente por todo aquele lugar lindo, mas dessa vez com minha própria scooter, que eu batizei de Julinha! Hoje em dia eu ando muito pouco com a ajuda de um andador para pequena distância, cadeira de rodas manual para média e para grandes distâncias, a Julinha é minha companheira inseparável. Juntas, descobrimos a liberdade!
Nasce o Milalá
Aos poucos, fui mudando meu olhar. Não ia me privar dos meus prazeres, mas o cenário da minha vida mudou, então eu precisava me readaptar. E tudo que eu senti após me dar conta daquilo, tudo que vivenciei, não podia guardar só pra mim. Assim nasceu o Milalá, um projeto que estimula as pessoas com mobilidade a se divertir, passear, viajar, ter contato com as atividades culturais, enfim, a viver exatamente como tem que se viver. Passei meses fazendo um mapeamento de pesquisa sobre as Organizações Não-Governamentais dos Estados Unidos pra saber qual Centro de Vida Independente poderia me receber para um trabalho voluntário. Nessa busca eu encontrei o Access Living, que fica em Chicago, maior referência por lá, que atendia minhas necessidades de pesquisa. Foram seis meses de um trabalho muito feliz e esclarecedor.
De lá eu fui pra Nova York, pra entender um pouquinho mais de outras organizações que trabalham com vida independente, educação e atividades culturais. Um momento inesquecível foi quando eu participei de um concerto maravilhoso, só para pessoas com deficiência intelectual e seus familiares. No Metropolitan, em participei de programas para pessoas com Alzheimer, com autismo, pra pessoas cegas etc. pude constatar que a cidade de Nova York está totalmente preparada pra você viver com total liberdade, independente da condição em que se encontra. Você não se sente deficiente nos Estados Unidos. Eu conseguia ir às compras, porque as lojas têm corredores largos, provadores pra cadeirantes, botões que abrem as portas pra que você não precisa esperar por ninguém nem fazer força pra empurrar aquelas portas pesadas. E o metrô? Em Chicago foi a primeira vez que eu consegui andar sozinha no metrô, porque tem rampas pra entrar e sair, sem se preocupar com os degraus que ficam entre a plataforma e o transporte. É tudo muito fácil!
Sem impedimentos
Outra coisa que adoro deixar claro é que meus limites nunca me impediram de fazer nada, nem mesmo de namorar. Casei a primeira vez aos 21 anos, e meu marido costumava dizer que tinha me comprado no Paraguai, porque à primeira vista era toda perfeitinha, com esses olhões claros. Depois, descobria que eu não enxergava nada (risos). Um outro namorado dizia que eu tinha um jeito especial de caminhar, que andava dançando. Aos 23 me separei do primeiro marido. Depois comecei a namorar de novo, fiquei sete anos num relacionamento, e agora estou casada de novo, há pouco mais de oito anos. É… sou bem casamenteira (risos). Meu marido é meu parceiro, Juntos, a gente fez um belo trabalho de documentar essa viagem aos Estados Unidos, que está disponível na página do Milalá no Facebook. E mesmo amando viajar, voltar é muito bom. Pros meus amigos, pra minha terra, pra minha casa. Própria, diga-se de passagem, que eu conquistei com meu trabalho.
Brasil, um país de (quase) todos
Eu sei que tem muita coisa sendo feita no Brasil, mas sei também que ainda há muito a se fazer. Precisei escolher por onde começar a trabalhar. Optei pela área de acesso. Vou explicar: tem um cara cadeirante que mora em Itaquera e precisa chegar ao Itaim Bibi pra trabalhar. Pra isso, ele tem que andar pela calçada, pegar um ônibus, depois o metrô, em seguida outro ônibus, e ainda andar um pouco de calçada.
O que acontece nesse meio tempo? A calçada não é nivelada, no metrô tem o vão entre a plataforma que dificulta muito, alguns ônibus não param pra cadeirantes, quando ele desce na calçada precisa atravessa a rua em meio à multidão, isso sem falar nos olhares de quem está por perto. Ah, São Paulo é uma cidade dura para as pessoas com deficiência. Quando eu comecei a me engajar neste assunto, procurei grupos de debates sobre o que está sendo feito em São Paulo com relação à acessibilidade. Hoje participo desses grupos de trabalho com reuniões mensais pra discutirmos todos os assuntos referentes à mobilidade. Eu busco sempre me engajar e dar sugestões que facilitem a vida dos cidadãos, mas principalmente no que diz respeito aos deficientes.
Desmitificando a deficiência
Com deficiência ou não, eu sou normal, e é assim que quero ser vista pelas outras pessoas. O trabalho dignifica o homem, diz o ditado. Então porque com os deficientes têm que ser diferente? O que acontece é que existe um pensamento entre os empresários, quando vão contratar, de que dar emprego a um deficiente é sinônimo de complicação, de que tudo vai ser muito difícil. Não imaginam que muitos deles, como eu, já estão acostumados com seus limites. Conheço um rapaz de excelente formação, com mestrado numa universidade conceituada, fluente em inglês, espanhol e até alemão, e que sofreu um acidente que fez com que até hoje ele precise de uma bengala. E só isso já faz com que ele passe por situações de preconceito nas entrevistas de emprego. Outro caso é de um rapaz que é surdo, e ninguém nunca se preocupou em colocar um interprete nas palestras e reuniões pra que ele pudesse entender. O que aconteceu? O rapaz ficou desmotivado, começou a faltar, e ainda levava nome de irresponsável.
Ah, não dava pra ficar quieta vendo tudo isso acontecer. Foi quando eu criei o Mila Guedes consultoria. Trabalho 100% com portadores de algum tipo de deficiência. Nosso papel é, de um lado, preparar psicologicamente essas pessoas, e do outro, ajudar as empresas a entenderem melhor como se trabalha com deficientes e treinar os recrutadores pra recebe-los da forma mais adequada possível. Os limites existem, eles estão conosco. Mas cabe a nós ultrapassá-los e vencê-los de uma maneira diferente. Eu aprendi a viver com meus 20% de visão como se fosse meus 100%, porque é! Descobri que sentindo o cheiro posso reconhecer mais as pessoas e aprendi a trabalhar minha memória. É o que eu digo: por acaso você pode ficar deficiente, mas não pode esquecer nunca de que você ainda é a mesma pessoa.
Fonte: Glamour