Tenho paralisia cerebral e, graças ao meu pai, me formei jornalista
Tudo graças ao meu pai, que me acompanhou em cada uma das aulas da faculdade e se “formou” comigo
As pessoas costumam comemorar o Dia dos Pais no segundo domingo de agosto. Já eu celebro todo dia. É o mínimo que posso fazer para agradecer ao meu coroa. Porque foi graças ao apoio incansável dele que eu nunca deixei a paralisia cerebral me impedir de realizar meus sonhos. Nem os mais ousados, como o de ser jornalista esportivo.
Nasci normal. A paralisia cerebral só aconteceu depois!
Nasci prematuro de seis meses. Apesar do peso baixo (1,4 kg!), era absolutamente normal. Mas não permaneceria assim por muito tempo: nos 70 dias em que precisei ficar na UTI neonatal para ganhar peso, meus pulmões pouco desenvolvidos me levaram a ter várias paradas respiratórias. Recebi alta, entretanto, os médicos deixaram claro que eu poderia ter sequelas. E de fato: ainda não dava para perceber, mas a falta de oxigênio havia me deixado com paralisia cerebral, o que levou minha coluna a se desenvolver de forma anormal. Resultado? Apesar de minha capacidade intelectual ter sido totalmente preservada, nunca tive controle do meu próprio corpo.
É óbvio que ouvir o diagnóstico não deve ter sido nada fácil para os meus pais. Mas, em vez de ficar lamentando as dificuldades que o futuro me reservava, seu Manoel (ele bancário, então com 34 anos) e dona Vera (ela dona de casa, também com 34 anos) trataram de me oferecer todo o suporte de que eu precisaria em cada etapa. E tiveram um trabalho danado para isso, viu?!
Sempre fui capaz de aprender, mas as escolas me rejeitavam!
Para começar, ao longo da infância, precisei fazer 11 cirurgias na coluna. Ela é toda contornada por placas que amenizam os desvios das vértebras. Ainda assim, sou bastante dependente. Meus dedos não têm movimentos precisos, então, não consigo comer ou me higienizar sozinho. Com foco nisso, meus pais me botaram para estudar os quatro primeiros anos numa escola específica para deficientes, onde éramos estimulados a sermos independentes, a aprendermos a fazer tudo o que pudéssemos sozinho. De lá, fui para a escola da AACD, onde um acompanhante pago pelo meu pai me ajudava a anotar as aulas, me dava o lanche, me levava ao banheiro…
O tempo passou, fiz 16 anos e a coisa ficou dramática. É que precisei mudar de colégio – na AACD não oferecia ensino médio. E, apesar de haver uma lei que proíbe as escolas de rejeitarem alunos especiais em salas regulares, os diretores não tinham o menor pudor de dizer que até fariam a minha matrícula, mas que não poderiam me ajudar em absolutamente nada! Precisamos rodar MUITO até achar um colégio com professores com boa vontade.
Não deixei por menos e sempre fui um dos primeiros alunos. Gosto de estudar, então, aprendia tudo rapidinho. Na hora das provas, precisava fazer meus exames em salas separadas, pois ditava as respostas para meu acompanhante passar para o papel. Meus colegas brincavam, pedindo que eu falasse mais alto pra ver se sobrava alguma cola para eles! Assim, concluí o ensino médio e me vi diante de um desafio e tanto: encarar a faculdade.
Meu pai resolveu “fazer” cursinho comigo
Sempre tive paixão por jornalismo e esportes, sobretudo por futebol. Como não posso praticar o segundo, percebi que escrever sobre o tema seria a minha realização. Daí, resolvi virar jornalista esportivo. Meu pai não apenas me matriculou no cursinho como decidiu ele mesmo me acompanhar às aulas.
Então, funcionava assim: seu Manoel trabalhava o dia todo no banco, chegava correndo, me colocava no carro e ia comigo para o cursinho. Como as turmas eram reduzidas e meu coroa é simpático, ele logo se adaptou. Fazia todas as anotações para mim e, em casa, ainda relia a matéria e me ajudava a praticar os exercícios propostos nas aulas.
Chegou o vestibular. Fiz as provas em salas separadas, com uma pessoa que anotava minhas respostas e um fiscal. Comemoramos muito quando o resultado saiu: aprovado. Mas, e agora, como é que eu iria para a faculdade?
No dia da formatura, seu Manoel foi o homenageado
E lá estava seu Manoel novamente disposto a fazer tudo por mim. Continuou com a rotina puxada de trabalhar o dia todo e de “estudar” comigo à noite. O cara, claro, deu show de novo! Anotou as aulas, leu para mim, em voz alta, os livros que os professores recomedavam, me levou para fazer os trabalhos em grupo, digitou as centenas de textos que precisei entregar… Não era uma rotina fácil, mas ele se integrou tão bem com a turma que até no happy hour estava lá, acompanhando a bagunça da galera.
O entrosamento foi tamanho que, no dia da formatura, quem foi o grande homenageado da noite? Meu pai! Ele não recebeu diploma, mas a faculdade fez questão de oferecer uma placa comemorativa. E mais: nós nos saímos tão bem como dupla, que também nos presentearam com uma pós-graduação. Nós dois!
Estou muito animado por poder voltar à universidade com meu pai na condição de meu colega de sala. Vai ser maravilhoso! Só precisarei arrumar outro acompanhante, já que agora, obviamente, seu Manoel não poderá transcrever minhas provas. Mas tudo bem, tenho certeza de que seremos uma ótima equipe, como sempre.
E isso é só o começo! Já escrevi artigos esportivos para um grande jornal do nosso país e algumas matérias também. Pretendo seguir nesse caminho. Não fiz faculdade para pendurar o diploma na parede. Quero atuar e sei que posso. E sempre que o fizer será uma forma de agradecimento à coragem e à dedicação do meu pai. Pois, graças a ele, posso dizer que os anos de faculdade foram os melhores da minha vida.
Marco Aurélio Condez, 29 anos, jornalista, São Paulo, SP
“Com o meu filho, faço coisas que eu jamais faria sozinho”
Quando confirmaram o quadro de paralisia cerebral do Marcão ficamos em choque, claro! Mas eu e a Vera decidimos lutar contra cada problema que aparecia. Fomos vencendo essas dificuldades sempre unidos e com o único propósito de dar ao nosso filho mais conforto. Para nossa sorte, a condição intelectual do meu menino não foi afetada. Pelo contrário: Marcão é extremamente inteligente. Quando sinalizou que tinha vontade de fazer faculdade, não pensei duas vezes: fiz a matrícula dele no cursinho e o acompanhava às aulas toda noite. Assim que ele passou no vestibular, entendi que meu auxílio seria de grande importância também. No começo, fiquei meio intimidado pelo contato com os outros jovens. Porém, a simpatia e a disposição do meu filho em conhecer as pessoas quebrou toda e qualquer barreira que pudesse existir. Acabei me tornando um membro da sala. Ia ao bar com o Marcão e os outros amigos nos happy hours da faculdade, e nunca me senti como um intruso. No dia da formatura ¿ um dos mais emocionantes para nossa família! – fui surpreendido por uma homenagem da sala: me entregaram uma placa comemorativa. Foi maravilhoso!
Posso dizer que graças ao meu filho faço coisas que não faria sozinho. Agora, por exemplo, começaremos uma pós-graduação: presente da faculdade pelo excelente desempenho do meu menino. O melhor é que também ganhei a bolsa. Seremos, dessa vez, colegas de sala ¿ e aposto que ele, como sempre, irá aprender muito mais rapidamente do que eu. Para mim, não poderia haver honra maior do que sentar ao lado de um garoto que foi capaz de construir tudo isso sem choramingar dificuldades. E tenho mais orgulho ainda em poder dizer que esse cara é meu filho!
Manoel Condez, 63 anos, bancário aposentado, pai do Marco
Fonte: http://soumaiseu.uol.com.br/