Sou cadeirante e fui chamada de louca por querer exercer meu direito à maternidade
A dona do 25º depoimento do projeto “Prazer, Sou Mãe” é a ativista Carolina Santos, vítima de tentativa de feminicídio que sofreu lesão medular e teve de lutar contra o preconceito ao engravidar do companheiro cego
Eu tinha 17 anos de idade quando sofri uma das piores violações de direitos humanos, a tentativa de feminicídio. Um tiro pelas costas interrompeu todos os meus planos de um amanhã.
Minha primeira barreira não foi o sofrimento por saber que não andaria mais, mas foi aceitar usar uma cadeira de rodas. Ainda lembro quando acordei com vontade de cozinhar um arroz com linguiça — sempre gostei de cozinhar. Algo simples, mas que se tornava um desafio. Ficar sentada em uma cadeira de rodas sem equilíbrio e com muita falta de ar… O arroz teve que ser finalizado por minha mãe, que sempre esteve ao meu lado.
O tempo foi passando e eu carregando as lembranças de ter perdido naquele mesmo dia a pessoa que eu amava. Talvez a perda viesse acompanhada das mudanças e marcas, feridas, manchas no rosto, corpo — 10kg mais magra, xixi e cocô na fralda faziam parte dessa realidade e história de vida.
Já não me sentia mais mulher e nem desejada. Quem ia querer alguém naquelas condições físicas e fisiológicas? Eu já me via como um corpo imperfeito em todos os sentidos… Ter prazer ou dar prazer já não fazia parte dessa condição. Esse momento na minha vida era o que todas as mulheres como eu enfrentam ao não estar nos padrões impostos pela sociedade.
Mas as coisas mudaram… Depois de 2 anos, tive a oportunidade de ir para o Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, referência para lesados medulares. Fui, mas como não sabia o que ia acontecer lá, fui acreditando que voltaria a andar. No aeroporto, toda a família e amigos reunidos em uma despedida daquela Carol e com a esperança de voltar a ser o que era 2 anos antes.
Exames mostravam que eu tinha sofrido uma lesão medular incompleta e grave. E veio a notícia que não voltaria a andar. Mas, após essa informação, eu vi que existiam outras possibilidades de poder continuar a vida, agora em uma cadeira de rodas.
Trocar de roupa e me vestir sozinha, métodos para as funções fisiológicas e até mesmo ter a minha sexualidade de volta. A vida ali recomeçava novamente, mas agora na minha condição real. As esperanças foram embora, e uma nova vida iniciou. Na volta para casa, tudo era novo e eu tentava me readaptar a viver.
Depois de alguns anos comecei a sair sozinha, voltei a estudar. Tudo isso me mostrava o quanto era possível dar a volta por cima. Até o espelho começou a ser meu amigo. Nele eu via a mesma mulher, linda, vaidosa e cheia de vida. Ao me aceitar eu fui me redescobrindo… Meu corpo, minhas sensações, prazer e desejo. No primeiro toque – talvez eu pudesse ter medo de ser tocada depois de tudo que me aconteceu -, não tive medo e meu corpo respondeu ao desejo.
Em 2010 iniciei um novo curso e lá conheci o Hélio. Foi quando passei a roda da cadeira no pé dele que, por ser cego, perguntou quem era. Falei meu nome e dali para frente nos tornamos grandes amigos. Fazíamos tudo junto, aprendemos a como conduzir minha cadeira pois ele fazia a força para empurrar e eu guiava a cadeira segurando as rodas. Logo começamos a namorar e ali era o começo de muitas coisas para nós.
No ano de 2011 começamos a tentar engravidar. Um ano e pouco e nada. Foi no mês de outubro de 2012 que, já sem esperar mais por esse momento, eu engravidei. Dali para frente, o que deveria ser o momento mais lindo da minha vida se tornou um tormento. As pessoas conhecidas me chamavam de louca o tempo todo, como se eu não tivesse condições ou fosse capaz de criar um filho, o que muitas vezes me fez sentir o pior tipo de pessoa em querer exercer o meu direito à maternidade.
Sem muitas informações de como seria essa nova fase na minha vida, fui ao posto de saúde para minha primeira consulta. Entrei no consultório e o médico me olhou, encheu a boca e disse: “eu não tenho como te acompanhar”.
Fiquei sem palavras, sem saber o que pensar. Saí da sala decidida a procurar o Hospital de Clínicas, que sempre me acompanhou, e imaginei que ao chegar na ginecologia encontraria toda a orientação de como seria essa etapa.
Na primeira consulta recebi a informação de que poderia ter parto normal —achei que ouviria da médica que seria cesárea por ser uma mãe com lesão medular. Fui atendida por residentes, me fizeram perguntas, e logo o exame de toque mais de uma vez. Achei estranho o procedimento e fui para casa pensativa…
Não tive muita informação sobre como seria minha gestação e, com 2 meses e meio, fui às pressas para o hospital com febre e muita dor. O exame de urina constatou minha primeira infecção urinária. E nesse momento se iniciou uma nova etapa na minha vida: remédios, idas à emergência, dor e febre… A infecção persistia, e os médicos me alertaram que pela quantidade de remédios tomados eu poderia abortar. Entre as consultas do pré-natal e idas a emergência, me via perdida, sem orientação e o medo me assombrava a cada infecção não curada.
Foi aí que, sem encontrar as respostas naqueles que achei que teriam, resolvi ir em busca de minhas dúvidas na internet. Lembro que tudo que eu queria era conversar com uma mãe cadeirante. Mas não consegui. Continuei a estudar, mas a cada consulta, o que deveria ser um momento único era algo constrangedor… Saía com muitas dores, era carregada como um saco por profissionais que não sabiam como me auxiliar. A falta de aparelhos adaptados me colocava nessa situação.
Nesse período. tive meu primeiro contato com uma doula que leu meu depoimento em um grupo de mães e se ofereceu a me acompanhar e me trouxe muita informação sobre o parto e os procedimentos. E, assim, com ela, eu e o pai do Roberth juntos aprendemos muito, elaboramos meu plano de parto. Eu queria poder decidir sobre meu corpo e sobre como seriam as coisas nesse momento tão singular para nós.
Vinte dias antes do parto, comecei a ter muita dor de cabeça. Sabia que não era normal, pois meu corpo responde a algo errado. Dessa maneira relatei para os médicos, que nada me disseram. Já me sentia cansada e pesada, a gestação foi complicada, muitas dores a cada vez que meu bebê se mexia. Foram noites e noites acordadas entre lágrimas!
No dia 10 de julho de 2013, acordei animada e muito disposta, diferente dos demais dias. Resolvi passar um batom bem vermelho e me maquiar. Assim comecei a limpar a casa pois sabia que estava na etapa final e logo teria meu garoto comigo. Queria deixar tudo arrumado para recebê-lo e passei o dia limpando… Cansada, tomei banho, jantei e resolvi ver um filme. Falei com o Hélio, dei boa-noite e, depois de alguns minutos, senti vontade ir ao banheiro. Vi que minha bolsa tinha estourado. Fomos ao hospital de ambulância. Passei meu plano de parto e pedimos para os médicos que a doula nos acompanhasse para poder fazer a descrição do parto para o pai, que é cego.
Fomos para pré-sala de parto quando nos informaram que eu estava com pré- eclampsia, o aumento da pressão arterial. Aplicaram sulfato de magnésio, mas não me disseram os efeitos e me informaram que teriam que aplicar a ocitocina para aumentar as contrações, que foram diminuindo…
Durante 8 horas de trabalho de parto, estava bem, mas a pressão não baixava e mais magnésio. A doula cantava, ríamos e cada um segurava minha mão, o que me dava tranquilidade, mas de repente comecei a sentir muita dor de cabeça. Queria gritar e não conseguia, a cada hora um médico diferente entrava e fazia o toque, o que era desnecessário. Foram 5 longas horas de muita dor, quando a equipe entrou correndo e me disse que meu filho já estava em sofrimento e que era a hora. Tentariam de tudo para parto normal; senão, teria de fazer cesariana.
Já sem controle de mim, fomos às pressas para a sala de parto, cheia de residentes olhando um momento nosso. Na primeira tentativa fiz força mesmo sem ter sensibilidade… Segunda tentativa e nada e na última e médica fez a episiotomia (corte do lado da vagina). Fiz força e a outra médica, com os braços, apertou minha barriga com tanta força que finalmente meu filho nasceu!
Quando o vi me assustei, estava roxo e às pressas os médicos o tiraram do meu peito e meus olhos o acompanharam. Quando retornou estava no colo do pai, que não continha a felicidade. Ele o entregou a mim e naquela hora eu queria ter forças para gritar. Chorei e beijei finalmente meu garoto. Nós 3 nos abraçamos e, entre lágrimas, com ele no meu colo, tive a certeza de que eu tinha finalmente vencido o desconhecido.
Não me arrependo de nada. Sabia que o inesperado poderia estar comigo naquele momento, mas deixei nas mãos de Deus. Fui muito criticada pela escolha que fiz, mas também tive muito apoio daqueles que acreditaram que eu era capaz. Hoje, as pessoas quando sabem que sou mãe, a primeira pergunta que fazem é “como foi a cesárea”. Quando digo que foi parto normal levam um susto. O capacitismo leva as pessoas a verem as mulheres com deficiência como incapazes de exercer seus direitos e suas escolhas.
Este ano, em março, recebemos a notícia de que estamos grávidos novamente. A felicidade do nosso garoto ao saber que vai ter uma irmã(o) é enorme. Eu hoje me sinto mais madura e certa das coisas que não quero passar e nem escutar.
Ser mãe me possibilitou a viver um novo mundo cheio de alegria, tristezas e desafios. A maternidade romantizada não existe na vida de nenhuma mulher. A gente constrói no dia a dia o que é ser MÃE.
Carolina Santos é dona do 25º depoimento do projeto “Prazer, Sou Mãe”. ativista feminista, blogueira, mãe. Tem vários artigos publicados em livros sobre os direitos das mulheres com deficiência. Atua nos direitos humanos e cidadania de todas as mulheres. É embaixadora reconhecida pelo Instituto Avon no enfrentamento à violência contra às mulheres, integra a coordenação do Coletivo Feminino Plural e Movimento Feminista de Mulheres com Deficiência Inclusivas.
Com informações huffpostbrasil
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