O Papel da Universidade Frente às Políticas Públicas para Educação Inclusiva
Caro leitor,
Acompanhe esse interessante e reflexivo artigo “O Papel da Universidade Frente às Políticas Públicas para Educação Inclusiva” da professora Rosana Glat* e da mestranda Márcia Denise Plettsch.**
Já publicamos nesse blog vários assuntos relacionados a escola inclusiva. Entre um dos assuntos abordados foi o papel desempenhado pelo professor, diretor e governo na efetivação da política inclusiva. Mas e quanto as universidades? Afinal qual é papel da universidade na efetivação da política de inclusão de alunos com deficiência no sistema regular de ensino?
“A escola inclusiva é uma nova escola, uma escola que ainda precisa ser criada. Nesse sentido, a universidade, a partir de suas três dimensões constitutivas — ensino, pesquisa e extensão — tem uma grande contribuição no desenvolvimento e implementação deste processo. A universidade pode(e deve) atuar na formação e capacitação de professores e demais agentes educacionais, bem como na produção de conhecimento por meio de pesquisas e projetos que validem e disseminem ações educativas bem sucedidas que atendam a esta nova proposta
“A vocação primária da universidade é o ensino: a formação de recursos humanos, e no caso das faculdades ou departamentos de Educação a formação de professores. Este é, sem dúvida, o aspecto determinante para a efetivação de uma política de inclusão educacional. Inúmeros estudos têm demonstrado que a principal barreira para sua efetivação é o despreparo dos professores para lidar com alunos com significativos déficits cognitivos, psicomotores e/ou sensoriais na complexidade cotidiana de uma classe regular (Bueno, 1999; Glat, 1995; 2000; Glat et al, 2003; Glat& Nogueira, 2002; Gofredo, 1992; entre outros).
Como bem lembra Bueno (1999), esta problemática afeta tanto os professores regulares, quanto aqueles do ensino especial. No primeiro caso, verifica-se que osprofessores regulares não têm experiência com esse tipo de alunado, e mal dão conta, em suas classes lotadas, de um número grande de alunos que, embora não tenham deficiências específicas, apresentam inúmeras dificuldades de aprendizagem e/ou de comportamento. Os professores especializados, por sua vez, vêm construindo sua competência com base no conhecimento das dificuldades específicas do alunado que atendem, dando ênfase à diminuição ou compensação dos efeitos de suas deficiências.Acrescente-se a isso o fato de que esses docentes trabalham em situações, quase que individualizadas de pequenas classes especiais com sua dinâmica e racionalidade própria, as quais, em grande parte dos casos, são estruturadas sem um planejamento acadêmico e sistema de avaliação consistente. Vale lembrar, também, que, mesmo quando inseridas em escolas regulares, as classes especiais, via de regra, não estão integradas ao projeto político-pedagógico da escola, e os próprios professores são considerados a parte do sistema (Muller e Glat, 1999).
De acordo com a LDB, a formação inicial dos professores deverá se tornar exclusiva responsabilidade das universidades ou institutos superiores de educação.Convém lembrar que o Ministério da Educação já vem há muito apontando sobre anecessidade de incorporar conteúdos sobre necessidades educativas especiais em todosos cursos de graduação, principalmente na área da formação de professores(Recomendação 1.793 do MEC de 28.12.94). No entanto, ainda são raros os cursos de licenciatura, e mesmo de Pedagogia, que oferecem habilitação ou disciplinas voltadas às especificidades de alunos com necessidades educativas especiais. E mesmo estes, em sua maioria, seguem um modelo tradicional de formação “especializado” e segregado,com orientação clínica, tal como adotado na Educação Especial dos anos 70, com pouca ênfase sendo dada, mesmo em cursos com reformulações curriculares recentes,para a questão da educação inclusiva como fenômeno complexo e atual (Glat et al,2003, p.61).
Essa é uma questão bastante preocupante porque o processo de inclusão escolar (de maneira mais ou menos articulada, dependendo da rede) está sendo implementado no país, a composição do alunado das escolas se tornando cada vez mais diversificada, e o currículo dos cursos de formação de professores não contempla essa nova realidade. Em conseqüência, os futuros docentes continuarão despreparados para atuar sob novo paradigma da escola aberta à diversidade, resultando em prejuízo social e acadêmico aos alunos incluídos e aos demais agentes participantes.”
“Para fazer frente a esta realidade as universidades precisam ser capazes de formar dois tipos de educadores: professores do ensino regular que sejam capacitados com um mínimo de conhecimento e prática sobre o alunado diversificado, contemplados nas licenciaturas em geral; e professores “especializados” nas diferentes necessidades educacionais especiais, a nível de especialização ou complementação por meio de habilitações nas faculdades ou departamentos de Educação.
Estes seriam preparados para atuar no atendimento direto à essa população (em classes especiais, salas de recursos, ou atendimento individualizado), na supervisão e orientação aos professores do ensino regular, bem como na gestão de sistemas educacionais visando a inclusão(Bueno, 1999; Glat, 2000; Glat & Nogueira, 2002; Mendes, 2002)5.
O grande desafio posto para as universidades é formar educadores que não sejam apenas instrumentos de transmissão de conhecimentos, mas, sobretudo, de novas atitudes frente à diversidade humana. Além disso, devem ser preparados para construir estratégias de ensino e adaptar atividades e conteúdos não só para os alunos considerados especiais, mas para todos os integrantes de sua classe. Cabe às faculdades ou cursos de Educação, também, trabalhar com a formação continuada dos atuais professores, e incentivar o vínculo direto entre os professores da Educação Especial e do Ensino Regular.
Vale ressaltar que, em nossa opinião, vem sendo criada uma falsa dicotomia entre educação inclusiva e Educação Especial, como se o advento de uma representasse a descontinuidade da outra. Na realidade, ocorre justamente o contrário. Em um sistema educacional inclusivo torna-se fundamental a especificidade da experiência em processos diferenciais de aprendizagem da Educação Especial, tanto como campo de conhecimento quanto como área de atuação aplicada.Essa suposta contradição talvez seja fruto da experiência brasileira onde, com raras exceções, a inclusão de alunos especiais no ensino regular tem sido uma iniciativa dos setores de Educação Especial das redes, que “se encarregam do suporte e da coordenação de todas as ações concernentes ao aluno, incluindo-se o seu encaminhamento para a classe regular, o planejamento da prática pedagógica, o apoio aos professores do ensino regular e a conscientização da comunidade escolar” (Glat etal, 2003, p.60).”
A segunda esfera de atuação da universidade é a produção de conhecimento através da pesquisa. A área da Educação, por tradição, tem privilegiado as chamadas pesquisas aplicadas, cujos resultados podem contribuir diretamente na transformação da realidade. Nesse aspecto, as universidades brasileiras vêm acumulando um significativo acervo de pesquisas sobre inclusão educacional, que abrange diversas dimensões –formação de professores, ensino-aprendizagem, atitudes e percepções de familiares e profissionais, auto-percepção, profissionalização, políticas públicas, entre tantas outras(Nunes, Glat, Ferreira & Mendes, 1998; Nunes, Mendes, Ferreira & Glat, 2003). Tal material oferece dados importantes sobre o processo de inclusão e as necessidades enfrentadas pelo sistema educacional brasileiro para sua implementação.
No entanto, ainda são poucas as pesquisas, experiências e práticas educacionais validadas cientificamente que mostram o que fazer para incluir no cotidiano de uma classe regular alunos que apresentem diferentes tipos de necessidades especiais. Conforme tivemos oportunidade de apontar em um trabalho anterior Glat et al. (2003):
(…) o próprio sistema de ensino não reúne dados que lhe forneça subsídios para promover a avaliação do processo de inclusão escolar a partir da voz dos próprios sujeitos incluídos, uma vez que as histórias de vida disponíveis são baseadas na experiência de pessoas, hoje adultas, que conseguiram se incluir à sociedade por “imposição” e / ou “insistência”,valendo-se de seus próprios esforços, em uma época em que não havia políticas públicas que garantissem seus direitos, tampouco métodos, processos ou recursos de adaptação.Como tais possíveis informantes, além de terem tido histórias de inclusão diferentes,constituem um grupo muito pequeno e suas vozes não necessariamente auxiliariam na avaliação do impacto das experiências de inclusão sobre o cidadão deficiente hoje ingressando no sistema escolar, para o qual as políticas públicas de inclusão consistiriam na única alternativa para obtenção de voz pública (p 62).
Em face desta constatação é preciso ampliar o foco das pesquisas em duas direções básicas:
a) na avaliação das inúmeras experiências de inclusão em curso, mais ou menosbem sucedidas, a partir de pesquisas de campo – sob diferentes enfoques ou metodologias, tais como Etnografia, História de Vida, Estudos de Caso, etc. –, de modo que se possa identificar, por exemplo, as dificuldades que foram encontradas na prática do dia-a-dia, qual a trajetória (em termos longitudinais) de aprendizagem desses alunos no sistema regular e, principalmente, que estratégias de superação foram encontradas;
b) na valorização da pesquisa-ação, incluindo o desenvolvimento de métodos etécnicas inovadoras que possam ser levadas a cabo no próprio espaço escolar. Ou seja, investigar e experimentar formas de se fazer inclusão no cotidiano de uma escola. Por exemplo, como fazer adaptações curriculares e avaliação da aprendizagem de um aluno com necessidade especial que tenha uma deficiência X, em uma classe Y, na escola Z.
Sobre a importância da pesquisa-ação na área da educação inclusiva, diz Ferreira (2003):
Numa abordagem de pesquisa-ação o pesquisador compromete-se politicamente com o desenvolvimento e empoderamento da comunidade dentro da qual o estudo se insere. O pesquisador é parceiro da comunidade que estuda e é aprendiz que busca se engajar na realidade estudada, a fim de compreender a percepção que a própria comunidade escolar tem acerca de sua realidade, como disse Paulo Freire. O pesquisador em ação não é o detentor do conhecimento e, portanto, não tem as respostas, o veio de julgamento (comum aos pesquisadores quando invadem o campo) e o poder das decisões sobre o objeto de estudo. Somente através da parceria com os membros da comunidade em investigação e da ação investigativa conjunta que pesquisador e parceiros buscarão construir uma teoria aplicável àquela realidade particular (pg.14).
Investir nessas duas direções permite também superar uma outra falsa dicotomia que é a da teoria / prática ou academia / campo, na qual está embutida a visão de que cabe à universidade o papel do pesquisador, enquanto que a escola e os professores figuram tão-somente como sujeitos passivos — objetos de estudo — nesse processo. Ao contrário, como apontado nas palavras de Ferreira, o que se propõe é um tipo de integração da universidade com a rede escolar em que os professores participem ativamente de todas as fases do desenvolvimento do estudo, aprendendo a serem pesquisadores de sua própria prática.
Esta concepção de pesquisa aplicada articula-se ao primeiro aspecto da discussão aqui travada, ou seja, que a formação de educadores pela universidade deve incluir não apenas um conteúdo abrangente, mas, também, uma maior interrelação coma prática do seu corpo discente que, em grande medida, já é composto por professores que podem desenvolver essas pesquisas em seus próprios locais de trabalho.
O terceiro eixo constitutivo da universidade é a extensão, vinculada intimamente ao ensino e à pesquisa, porém, voltada diretamente para a sociedade. Projeta-se como um processo de inserção social consciente da universidade que implica em uma retroalimentação mútua entre a produção de conhecimento acadêmico e sua disseminação e concretização em práticas sociais.
É na dimensão da extensão que se faz a tão necessária relação teoria-prática, que se manifesta em diversas formas: cursos,capacitações, consultorias, projetos aplicados, e inúmeras outras ações desenvolvidas pela universidade em diferentes comunidades, incluindo-se, certamente, projetos referentes à educação inclusiva.
Vale ressaltar, no entanto, que mesmo que freqüentemente as ações extensionistas surjam a partir de demandas sociais específicas, na nossa concepção,extensão universitária não é equivalente à prestação de serviços, nem tem como prioridade a captação de recursos, embora muitas vezes esses projetos revertam em verbas para a universidade. Projetos de extensão devem ser diretamente vinculados ao currículo tendo o valor acadêmico como norte, e o ensino e a produção de conhecimento como matriz principal.
Em que pese a disponibilidade da universidade para ir a campo assessorar as escolas em projetos de educação inclusiva, é importante enfatizar, também, que nós não temos todas as respostas. Temos sim, recursos humanos, metodologia investigativa, e o interesse em analisar o que já está sendo feito para buscar as respostas educativas mais eficazes. No entanto, para que isso aconteça, como já comentado, é fundamental que haja um estreito laço entre a universidade e a rede escolar. Integração essa que, no campo da educação inclusiva, ainda é em nosso país, de modo geral, muito tímida no âmbito institucional.
Finalizamos esta reflexão reafirmando nossa convicção de que a implementaçãode políticas de qualidade voltadas à educação inclusiva será diretamente influenciada pelo grau de envolvimento e parceria efetiva entre as universidades e o sistemae ducacional. O papel e responsabilidade social da universidade, sobretudo a universidade pública, se afirmará na produção de conhecimento para a formulação e o debate crítico sobre as políticas educacionais, na formação de educadores e na criação de parcerias e iniciativas inovadoras com a comunidade escolar.
*Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,Coordenadora do Núcleo de Educação Inclusiva (NEI), Membro do Conselho Municipal de Educação doRio de Janeiro.
** Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Artigo publicado na Revista Benjamim Constant, ano 10, nº 29, p. 3-8, 2004
Bibliografia
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Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: SEESP, 1994.________.
Lei no 9394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,1996.________.
Lei nº 10.172/01. Plano Nacional de Educação, 2000.________.
Conselho Nacional de Educação / Câmara de Ensino Básico. DiretrizesNacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Brasília: CNE/CEB, 2001.
BUENO, J. G. Crianças com necessidades educativas especiais, políticaeducacional e a formação de professores: generalistas ou especialistas. RevistaBrasileira de Educação Especial, vol. 3. n.5, 7-25, 1999.
FERREIRA, W. B. Reflexão sobre o papel dos programas de pós-graduação naluta contra a exclusão educacional de grupos sociais vulneráveis. Revista Espaço nº18/19 (dezembro/2002- julho/2003), Rio de Janeiro: INES, 2003. Disponível em:http://www.ines.org.br/paginas/revista/espaco18/Debate01.pdf, acessado em: 21/julhode 2004.
*Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,Coordenadora do Núcleo de Educação Inclusiva (NEI), Membro do Conselho Municipal de Educação doRio de Janeiro.
** Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Artigo publicado na Revista Benjamim Constant, ano 10, nº 29, p. 3-8, 2004
É inegável o importante papel desempenhado pela universidade na política de inclusão, haja vista que a maioria dos professores que passarão pela universidade, futuramente lecionarão para alunos com algum tipo deficiência.
Nunca é de demais repetir que é extremamente necessário, um investimento maior por parte do governo na formação inicial ou continuada dos professores.
Vera