Acessibilidade

Desencantamento por Viçosa: relato de uma professora com deficiência

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Maria José de Oliveira Fontes
Maria José de Oliveira Fontes

 

Caro leitor,
Acompanhe o interessante e reflexivo relato de Maria José de Oliveira Fontesa, Economista Doméstica e MS em Psicologia, e também professora do Departamento de Economia Doméstica da UFV.

Acolhedora, cidade de encontros, desencontros, paixões, alegrias, tristezas, sonhos, encantos e até desencantos. É assim que eu e grande parte da população que aqui desembarcou para estudar, trabalhar e… viver, sente por Viçosa. Há 23 anos, quando passei no concurso para docente, realizei dois dos meus grandes sonhos: ser professora e ser professora da Universidade Federal de Viçosa. Desde que me mudei para fazer o curso de Economia Doméstica, já se foram aproximadamente 30 anos aqui. Nascida em Piumhi, Sudoeste de Minas Gerais, tenho Viçosa como cidade do coração, que tão bem me acolheu e que escolhi para viver com minha família. Em 2006, um acidente de carro transformou completamente minha vida, pois sofri uma lesão na medula que me deixou paraplégica. A despeito do acidente e apaixonada por minha profissão, reassumi as funções na UFV, em 2008.

Ao vivermos nessas condições, milhares de brasileiros com dificuldades de locomoção, temos que enfrentar no cotidiano diversos tipos de barreiras. Acredito que isso não seja novidade para os leitores. Então, para mim e para muitos do meu convívio começaram, a partir daí, a surgir os desencantos por onde passo, inclusive pela nossa querida Viçosa.

Na UFV, apesar de já terem sido iniciadas obras com o propósito de atender às pessoas com deficiência, ainda há muito que fazer. Existem barreiras que, a meu ver, são as mais difíceis de serem transpostas: a do desrespeito e a do preconceito. Por exemplo: veículos estacionados em vagas destinadas às pessoas com deficiências e falta de condições adequadas de acessibilidade no trabalho. Outras como rampas inadequadas impedindo a circulação com independência e segurança; falta de sinalização ou sinalização inadequada; falta de elevadores nos prédios; vias que não permitem transitar com segurança com a cadeira de rodas são barreiras que precisam ser eliminadas. Tenho conhecimento de que a atual administração, sensível a esses problemas, tem desenvolvido projetos de acessibilidade no campus e espero que essa iniciativa venha beneficiar a todos – docentes, discentes, servidores técnico-administrativos e visitantes – pessoas com deficiências que circulam em nossa estimada UFV.

Quanto ao município de Viçosa, as ruas, calçadas e edificações impedem que nós, cadeirantes circulemos com independência, segurança e autonomia conforme estabelece a lei. A elevada taxa de crescimento da cidade, nos últimos anos, tem levado a consequências sérias do ponto de vista urbanístico. Não é necessário ser especialista para perceber que há algo de errado acontecendo na cidade. É comum ouvirmos: a cidade, ou melhor, o trânsito está um caos. O número de carros é assustador. As calçadas não comportam as pessoas que têm de andar nas ruas; as construções ultrapassam os limites com seus tapumes; o comércio coloca suas mercadorias nas calçadas, impedindo a circulação das pessoas; as bicicletas circulam na contramão causando riscos a pedestres e motoristas; as motocicletas cortam os carros desesperadamente. Esses são problemas comuns a quem anda “normalmente”; imagine-se o mesmo cenário para as pessoas que possuem alguma deficiência! Enfrentar tudo isso e mais: usando cadeira de rodas, muletas, bengalas, não enxergando, dependendo de cuidados para se locomover como um idoso, uma criança pequena, uma gestante, uma mãe com seu carrinho de bebê para atravessar uma rua? Ah, isso seria demais!

Viçosa seria uma cidade encantadora, com rampas adequadas e alinhadas com as faixas de pedestres, calçadas sem buracos e niveladas, prédios com elevadores, vagas apropriadas, bem sinalizadas e proporcionais nos estacionamentos, calçadas sem desníveis para garagens, dentre outros. Mas, como tudo isso é um sonho e está longe do real, resta-nos o isolamento em casa.

É comum ouvir comentários como esse: “em Viçosa existem poucos cadeirantes, por que fazer rampa em minha loja, se não vendo para nenhum deles?” Respondo por mim e por várias pessoas com outros tipos de deficiências que tive oportunidade e o prazer de conhecer nesses quase quatro anos. Não saímos de casa e não vamos às lojas, aos shoppings ou supermercados, restaurantes etc., por falta de condições das ruas, calçadas, vagas em estacionamentos e, principalmente, por falta de acesso a esses locais. Não escolhemos, não gostamos e não queremos isso para nossas vidas. Nossas famílias e nossos amigos também não. Essa, enfatizo, é a situação de todos nós, independente da classe social e das localidades em que moramos. Este é um dos desencantos que Viçosa nos mostra e, por conseguinte, aos nossos amigos, colegas de trabalho e até mesmo aos visitantes.

Outra situação que tem sido observada com certa freqüência é a seguinte: algumas autoridades se consideram conhecedoras das leis, mas, no momento de cumpri-las, parece que as esquecem e eu me pergunto: será que conhecem mesmo ou falta coragem política? Então entra o famoso jeitinho brasileiro! Fazer as coisas precariamente, de qualquer jeito, apenas para cumprir a lei… Nestes casos, perde-se tempo, dinheiro e mão de obra. Por quê? Porque não se pensa no usuário. Quem vai utilizar a plataforma ou o elevador? A cadeira de rodas vai entrar? Com acompanhante ou não? As vagas de estacionamento estão em número suficientes, dimensionadas e sinalizadas conforme determina a lei? Ou os responsáveis pela construção dos estacionamentos acham que os cadeirantes têm que pular pela janela para entrar no carro, quando fazem as vagas muito próximas, não deixando espaço suficiente para a cadeira de rodas? Com todo respeito aos especialistas que aqui não se incluem e a vocês, leitores, mas na maioria dos estacionamentos é isso o que ocorre.

Acredito que de leis, na área de acessibilidade, o Brasil não precisa mais; está recheado delas. Por exemplo, o Decreto Nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004, define acessibilidade como a “condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida”. Em outras palavras, acessibilidade é um idoso poder entrar em um prédio utilizando um elevador com segurança para fazer um exame médico; é um cego que cruza a rua sozinho, porque o semáforo emite um sinal sonoro; é um anão que encontra um balcão de bilheteria da sua altura, na hora de ir ao cinema; é uma mulher grávida conseguir embarcar no ônibus (e passar pela roleta) sem nenhuma dificuldade; é uma pessoa obesa poder sentar-se confortavelmente na poltrona do ônibus; é uma criança surda ter à disposição intérpretes de libras na escola pública; é um cadeirante que pode se locomover com independência, segurança e autonomia numa cidade sem buracos nem obstáculos. Enfim, acessibilidade é a garantia plena do direito de ir e vir – e permanecer. Apesar das leis garantirem os direitos dessas pessoas o que é um grande passo, percebermos que a sociedade exclui as pessoas que considera diferente. E infelizmente, temos que assumir que essa é uma questão cultural, histórica e social. São várias gerações que excluíam e que o fazem até hoje. Precisamos, então, conhecer e reconhecer essas pessoas que vivem a nossa volta, excluídas por nossa própria ação. Ação manifestada pelos olhares, pelas atitudes, pela falta de tempo (“vou deixar meu carro só um minutinho!”) ou até mesmo pela agressividade que reagem quando são questionadas porque pararam numa vaga que não é permitida para elas. Parece que as pessoas desconhecem que ser ético é ter respeito ao outro, quando se vive em sociedade. Isso, infelizmente, é a pequenez humana.

Em Viçosa, estamos presenciando algumas ações sendo tomadas para solucionar os problemas de trânsito: semáforos entrando em operação e rampas sendo feitas (embora algumas estejam inadequadas), entre outros. Esperamos, no entanto, que esses sinais também sirvam como alerta para outras questões, além da organização do trânsito, como o respeito ao próximo e que as pessoas possam rever os conceitos de cidadania, humanidade, de se saber viver em coletividade. Diferentemente do trânsito, não percebemos qualquer ação no que se refere à adaptação ou projetos de acessibilidade em shoppings, lojas, restaurantes, supermercados e outros. As iniciativas de acesso em alguns desses locais ocorreram pela sensibilidade de seus proprietários, pelas ações do Ministério Público e outras por iniciativas dessa que ora aqui escreve. Esperamos que essas ações se multipliquem, a fim de atender todas as classes sociais, porque, afinal de contas, nós também somos cidadãos e temos os mesmos direitos de qualquer consumidor. Todos os indivíduos, moradores de uma cidade, independentemente de terem deficiências ou não, contam com as autoridades representadas pelos poderes legislativo, executivo e judiciário no cumprimento das leis. Se quisermos que essa sociedade se torne inclusiva, é preciso haver um esforço coletivo de todas as pessoas que priorizem o diálogo em busca do respeito e da igualdade. Ainda acredito que Viçosa poderá se transformar e ser uma cidade mais agradável para se viver. Se todos colaborarem, juntos, poderemos agir o mais rápido possível antes que o encanto por essa terra se dissipe para sempre.

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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