A imagem corporal de indivíduos com paraplegia não congênita: um estudo exploratório
Caro leitor,
Acompanhe durante as próximas semanas o interessante artigo “A imagem corporal de indivíduos com paraplegia não congênita: um estudo exploratório” das pesquisadoras Mariana Tavares de Campos*, Hilda Rosa Capelão Avoglia** e Eda Marconi Custódio***.
Resumo
A sociedade atual está organizada para indivíduos física, intelectual, social e emocionalmente perfeitos. Conseqüentemente, pessoas com deficiência encontram cada vez mais dificuldade em se adaptar. Assim, este estudo tem como objetivo verificar a representação do próprio corpo em indivíduos com deficiência física, especificamente com paraplegia não congênita. Participaram do trabalho dois adultos jovens, do sexo masculino, com idades entre 20 e 25 anos, com paraplegia não congênita há cinco anos. Inicialmente foi realizada uma entrevista semiestruturada e, posteriormente, a aplicação individual do Teste do Desenho da Figura Humana (DFH), conforme Van Kolck (1984). Os resultados indicaram que os participantes vivem um conflito sexual representado pela divisão do corpo em zonas do tronco superior e inferior. Observou-se, ainda, o surgimento de mecanismos defensivos para minimizar suas dificuldades diante do próprio corpo. No que se refere à imagem corporal, esta parece alterada e permeada por sentimentos de falta de confiança em si, nostalgia, atitude de expectativa diante da vida e desejo de obter aprovação social. O presente estudo pode fornecer subsídios para o planejamento de uma intervenção multidisciplinar mais efetiva, bem como referendar ações psicológicas na área da deficiência, visando à adaptação desses indivíduos e à promoção de sua qualidade de vida.
É em função da nossa imagem do corpo, sustentada e cruzada com o esquema corporal, que podemos entrar em comunicação com outrem, pois é na imagem corporal, suporte do narcisismo, que o tempo cruza com o espaço, e que o passado inconsciente ressoa na relação presente (DOLTO, 2004). Assim, para Damásio (2001), o organismo, pela parceria cérebro-corpo, interage com o ambiente em conjunto, não sendo uma interação só do corpo ou só do cérebro. Ou seja, o psiquismo e a motricidade fazem parte de um organismo total, de uma corrente de interação.
De maneira ilustrativa, na concepção neuropsicológica, o mesmo autor comenta que se um indivíduo cortasse todos os sinais do cérebro para o corpo, seu estado do corpo se alternaria bruscamente e, como consequência, o mesmo sucederia com sua mente. Argumenta ainda que, caso desligasse apenas os sinais do corpo para o cérebro, sua mente também se alteraria. Para ocasionar alterações no estado mental, o autor sugere que basta a ocorrência de um bloqueio parcial do circuito cérebro-corpo, como acontece em doentes com lesões na medula espinal.
A relação corpo-cérebro pode ser percebida por meio de uma pesquisa realizada pelos americanos Noble, Prince e Gilder (1954, apud VAN KOLCK, 1973) com 66 adultos amputados de guerra. O citado estudo correlacionou a imagem corporal destes indivíduos com a entrevista clínica e, comparando-os com outro grupo de pacientes neurológicos com alguma perda de função em uma ou mais extremidades, mas não amputadas, encontraram nos dois casos evidências de ansiedade de castração, sentimentos agressivos, passividade e desejo de independência. A análise dos dados, obtidos por meio do desenho da figura humana, mostrou que, em praticamente todos os amputados houve alterações no desenho das extremidades. Pacientes considerados pouco adaptados à perda de seu membro tenderam a desenhar seu membro ausente maior que o oposto ou com sinais de ênfase, enquanto os bem adaptados fizeram a extremidade amputada menor ou a omitiram
A compreensão dos aspectos psicológicos das doenças pressupõe, para Novaes (1975), o conhecimento das relações existentes entre as funções psíquicas e somáticas, tendo a psicologia contribuído muito através da investigação e da análise dos comportamentos dos indivíduos enfermos, formulando teorias que procuram explicar a interdependência dos fenômenos físicos e mentais.
Especificamente a esse respeito, Van Kolck (1984) comenta que, sendo a imagem corporal o produto de um organismo vivo como um todo, uma alteração em uma parte do corpo devido a uma doença ou mal físico, por exemplo, não introduzirá modificações na imagem corporal apenas referente a essa parte; a mudança será geral, pois resultará de novas relações do indivíduo consigo mesmo e com os outros.
A dor é caracterizada por Novaes (1975) como uma estreita relação entre o indivíduo e seu corpo. A autora argumenta que em certo sentido “somos o nosso corpo” e “temos um corpo”, daí a interligação entre o eu e o corpo. A vivência da dor aparece na zona onde o “ter” um corpo evolui para o “ser” um corpo.
Dolto (2004) afirma ainda que golpes orgânicos precoces podem provocar perturbações no esquema corporal, e estas, por falta ou interrupção das relações “linguageiras”, podem conduzir a modificações passageiras ou duráveis, por toda a vida, da imagem do corpo. No entanto, é frequente que o esquema corporal enfermo e uma imagem corporal sã do corpo coabitem em um mesmo sujeito. Quando uma criança é atingida por uma enfermidade é necessário que seu déficit físico lhe seja explicitado com referência a seu passado não enfermo ou, ainda, se for o caso, à diferença congenital entre ela e as outras crianças. É importante também que ela possa, pela linguagem mímica e pela palavra, expressar e fantasmar seus desejos, quer sejam eles realizáveis ou não, segundo este esquema corporal enfermo (DOLTO, 2004).
Assim, uma criança paraplégica tem necessidade de brincar verbalmente com a mãe, de acordo com Dolto (op. cit.), falando sobre atividades como correr, saltar, coisas que sua mãe sabe, assim como ela mesma, que jamais poderá realizar. Ela projeta uma imagem sã do corpo, simbolizada pela palavra e pelas representações gráficas, em fantasmas de satisfações eróticas, na troca de sujeito para sujeito. A mesma autora comenta ainda que, se os desejos da criança forem falados a alguém que os aceite em um jogo projetivo, isto pode permitir ao sujeito integrar na linguagem tais desejos, apesar da realidade, ou seja, da enfermidade de seu corpo. A linguagem traz à criança as descobertas de meios pessoais de comunicação. Assim, sua imagem do corpo pode ser inteiramente sã e permitir uma linguagem de comunicações inter-humanas tão completas e tão satisfatórias para ela quanto as de um indivíduo não-enfermo. É o caso de Denise Legrix, mulher-tronco, autora do livro Née comme ça1, que, doente de nascença, foi amada por seu pai, sua mãe e pelo meio social.
Veja a segunda parte desse artigo.
*Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo e mestranda em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: mari_tcampos@hotmail.com.
**Psicóloga, mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo, doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pela Universidade de São Paulo e docente supervisora da Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia da Universidade Metodista de São Paulo. Orientadora do presente estudo. E-mail: hilda.avoglia@metodista.br .
***Psicóloga, doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, docente, supervisora da Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia da Universidade Metodista de São Paulo e docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Co-orientadora do presente estudo.