A subjetivação do (d)eficiente no interior da escola: uma identidade a ser (des)construída: Parte Final
Caro leitor,
Dando continuidade ao artigo “A subjetivação do (d)eficiente no interior da escola: uma identidade a ser (des)construída” da professora Susana Couto Pimentel*, veja hoje a última parte desse relevante texto. Para que possa compreender melhor, recomendo que leia a primeira parte desse artigo.
“A escola age na fabricação de igualdades e eliminação das diferenças. A instituição escolar busca homogeneizar, tornar igual, massificar, disciplinar… e por isso a diferença que aparece em seu interior torna-se um incômodo.
Na escola, a ordem é proveniente da “relação de comunicação pedagógica” que se estabelece sob forma de imposição e de inculcação de um arbitrário cultural, isto é, interesses objetivos dos grupos ou classes dominantes. Essa prática escolar pode ser relacionada ao que Bourdieu chama de violência simbólica, tendo em vista que “toda ação pedagógica é […] uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 20).
Numa análise foucaultiana, os efeitos dessa ação pedagógica não seriam apenas simbólicos, tendo em vista que demarcam diferenciações, excluem, determinam saberes e verdades sobre como pensar, ser e agir.
Para Bourdieu e Passeron (1982), essa ação de inculcação produzida pelo trabalho pedagógico acaba por produzir o habitus, isto é, a cultura inculcada pela escola. Na medida em que se prolongam, essas ações de inculcação contínuas podem provocar uma transformação profunda e durável daqueles que elas atingem.
Para Bourdieu, o habitus é a estrutura social interiorizada, “são os valores, as formas de percepção dominantes, incorporadas pelo indivíduo, e através do qual ele percebe o mundo social, percepções que, por sua vez, regula a prática social” (SILVA, 1996, p. 20). Essa prática social mediada pelo habitus predispõe o indivíduo a agir de determinadas formas.
O habitus é interiorizado a partir do discurso escolar que, por sua vez, associado às posturas pedagógicas, aos silêncios, ameaças, punições, recompensas, produzem a subjetividade do sujeito no interior da escola. A subjetividade é a “forma pela qual, em nossa cultura, os seres humanos se tornam sujeitos” (EIZIRIK; COMERLATO, p.49). É importante frisar que enquanto a subjetividade é uma interiorização do exterior, a subjetivação é a força que se volta para o sujeito mesmo, para a sua formação, constituição (GARCIA, 2002). Assim, a subjetividade/subjetivação acontece como um “duplo”, isto é, são duas ações partes de um mesmo processo.
A produção de sentidos e subjetividades na escola se dá a partir das relações de poder que nela circulam. A ordem advinda da instituição escolar funciona como instituinte, como repressão aos impulsos, contenção das diferenças, busca do consenso. Através de um processo velado de disciplinarização dos corpos, a escola luta para impor ao sujeito tentativas de homogeneização discursiva e comportamental. A escola age na fabricação de igualdades e eliminação das diferenças. A instituição escolar busca homogeneizar, tornar igual, massificar, disciplinar… e por isso a diferença que aparece em seu interior torna-se um incômodo.
A tentativa de modelação dos chamados corpos dóceis (FOULCAULT, 1987), produtivos, eficientes, adaptados acontece através da padronização do tempo escolar, do espaço e do movimento. O tempo escolar é padronizado através da proposta de seriação, de delimitação de horário de se responder aos exercícios (tentativa de homogeneização em que a demora é considerada uma falta e a rapidez uma virtude), do pouco espaço dedicado a criação/ construção, da ênfase na repetição e da enorme quantidade de tempo depreendido na busca do controle do aluno, através do discurso do professor. O espaço e movimento são também padronizados na distribuição dos alunos nas filas, que muitas vezes representam hierarquias de saber, de capacidades, e na repartição de valores ou méritos.
Desse modo, o sistema de ensino funciona como seletivo e excludente, dissimulando a exclusão sob a ideia de seleção. Através das práticas de classificação2 , disseminadas principalmente pelos testes de inteligência de Binet e Simon3 , foi criado um estereótipo de aluno desejável e que está pautado em padrões considerados de normalidade cognitiva e de comportamento. A proposta é efetivada através de sistemas de testagem, realizados através dos exames escolares que escolhem os mais aptos através da classificação.
As funções do exame não se reduzem aos serviços que ela presta à instituição […] é suficiente observar que a maioria daqueles que, em diferentes fases do curso escolar, são excluídos dos estudos se eliminam antes mesmos de serem examinados e que a proporção daqueles cuja eliminação é mascarada pela seleção abertamente operada difere segundo as classes sociais. (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 163).
Percebe-se que os exames ratificam aquilo que já foi vaticinado pela autoridade pedagógica. Os veredictos escolares carregados de implicação simbólica são transmitidos por aqueles que representam a autoridade pedagógica na escola e sua mensagem é interiorizada pelos alunos que se colocam como meros receptores pedagógicos.
Nada é mais adequado que o exame para inspirar a todos o reconhecimento da legitimidade dos veredictos escolares e das hierarquias sociais que eles legitimam, já que ele conduz aquele que é eliminado a se identificar com aqueles que malogram, permitindo aos que são eleitos entre um pequeno número de elegíveis ver em sua eleição a comprovação de um mérito ou de um “dom” que em qualquer hipótese levariam a que eles fossem preferidos a todos os outros. (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 171).
O trabalho pedagógico busca a manutenção da ordem pela inculcação ou pela exclusão, através da interiorização de disciplinas e censuras de forma que se tornem autodisciplina e autocensura. Essa exclusão efetivada pelo trabalho pedagógico só adquire força (simbólica) quando toma aparência de autoexclusão. Dessa forma, ele acaba por interiorizar nos excluídos a legitimidade de sua exclusão.
A inculcação acontece através de uma prática de dominação verbal “excluindo tanto mais rapidamente os diferentes grupos ou classes quanto estão mais completamente desprovidos do capital e do ethos objetivamente pressupostos por seu modo de inculcação” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 61). O objetivo da exclusão é manter a eficácia do modo de inculcação do trabalho pedagógico.
Essa “verdade” produzida na e pela escola funciona de forma coercitiva produzindo efeitos de poder sobre aqueles que a escutam, prescrevendo seu modo de ser e de se comportar. É nesse contexto que se está “possibilitando” a construção de uma subjetivação do (d)eficiente e fornecendo-lhes vocábulos e “meio pelos quais […] [eles] podem se narrar e conduzir a si mesmos segundo certas normas” (GARCIA, 2002, p. 29).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões feitas aqui podem suscitar outras questões para reflexão: Estando a escola implicada na subjetivação dos seres humanos não estaria ela contribuindo para a reprodução de uma identidade (d)eficiente, baseada no sentimento de menosvalia e pautada no referente da normalização? Uma desconstrução dessa identidade não traria outras realidades para a tão propalada proposta de inclusão?
Porém, para que se desconstrua essa (des)identidade é necessário inverter processos e formas de pensar, deixando emergir na escola a polifonia, através da multiplicidade de vozes, a riqueza das partes e a diversidade dos novos ângulos e formas de olhar o diferente, aprender a pensar de uma nova maneira. Isso significa “refutar as dicotomias e reducionismos simplistas que têm marcado a história das sociedades, das instituições e das pessoas; é abrir-se para as possibilidades de mudar […] tanto no olhar de si e dos outros, como na necessidade de tudo retificar, acomodar, por em ordem, enquadrar, silenciar. A diferença é mudança […] provoca dor e sofrimento, porque abala estruturas” (EIZIRIK; COMERLATO, 2004, p. 115).
Diante do exposto, é também necessário lembrar que a instituição escolar é produto de um contexto social. Ao longo da sua existência institucional a escola vem repetindo, como um eco4 , o discurso social dominante que prevê a exclusão para o diferente, com base na ética perversa da relação inclusão/ exclusão, buscando assegurar uma identidade fixa e homogênea. “Uma das formas de poder que penetra na escola é o discurso de fora, autorizado, reconhecido, introjetado […] estereotipado, cristalizado, repetido indefinidamente” (EIZIRIK; COMERLATO, 2004, p. 125).
Esse discurso reproduzido pela escola precisa ser revisto, pois uma instituição que não leva em conta as diferenças se torna autoritária. Para Foucault (1996, p. 10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo […] pelo que se luta, o poder do qual [se quer] apoderar”. Assim, novos conceitos e práticas precisam ser incorporados à educação escolar, de forma que as diferenças sejam atendidas em suas peculiaridades sem, contudo, provocar desigualdades. Para isso, torna-se necessário trazer dinamicidade ao processo educativo pela capacidade de conviver com a mudança e a transformação; flexibilidade quanto ao trabalho proposto, tendo em vista às necessidades dos alunos, abrindo possibilidade de repensá-lo; criatividade e coragem para inovar, desconstruir e construir. Nesse processo, o conflito precisa ser entendido como necessário, por produzir possibilidade de surgimento do novo e mediação, vista como possibilidade de interações estabelecidas no processo de aprender, que é parte de uma construção individual/social.
Para se efetivar esse novo momento, torna-se necessário o rompimento com as ideias de uniformidade e homogeneidade, presentes no âmbito das instituições escolares. Isso implica a desconstrução das narrativas dominantes que fecham as possibilidades de construção de identidades alternativas, isto é, não hegemônicas, ou não idealizadas, ou projetadas pela própria escola, por aqueles que possuem um certo saber científico e técnico e se empenham por definir e classificar os que são considerados “portadores de deficiência”, aos quais é atribuída identidade a partir do suposto saber que está pautado nos processos de normalização.
É importante também garantir, na escola, espaço para a possibilidade de resistência a sujeição, às normas e aos poderes instituídos; espaço para a luta contra a individuação imposta, contra a homogeneização; espaço para o convívio com a diferença. Porém, não basta apenas discutir inclusão no âmbito escolar se vivemos numa sociedade excludente. É necessário ampliarmos essa discussão para um âmbito macro, onde se discuta a inclusão social como uma proposta imprescindível para a formação de sujeitos que se (re)conheçam como cidadãos possuidores de uma identidade e que consigam (con)viver com a diversidade sem que essa se constitua em respaldo para desigualdades.
* Professora Adjunta do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, CEP. 45.300-000, Amargosa/BA, Brasil.
Fonte: Educação em Revista, Marília, v.9, n.2, p.113-124, jul.-dez. 2008.
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