Educação Inclusiva

A subjetivação do (d)eficiente no interior da escola: uma identidade a ser (des)construída

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  • Educação InclusivaCaro leitor,

    Durante as próximas semanas  analisaremos o artigo “A subjetivação do (d)eficiente no interior da escola: uma identidade a ser (des)construída” da professora Susana Couto Pimentel*. Trata-se de um artigo muito interessante que diz respeito a inclusão escolar. Acompanhe!

RESUMO

O outro diferente funciona como depositário de todos os males, como o portador das falhas sociais. Esse tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a violência é do violento; o problema de aprendizagem, do aluno; a deficiência, do deficiente; e a exclusão, do excluído.

O presente artigo pretende refletir sobre a escola enquanto espaço de produção de subjetividades dos sujeitos aprendentes que nela estão inseridos. Para esta análise toma-se como base o lastro teórico de Bourdieu, Foucault e Vygotsky. A discussão será feita permeada pela abordagem dos paradigmas de segregação, integração e inclusão que a escola tem utilizado historicamente para lidar com o sujeito considerado ‘deficiente’. A partir das reflexões feitas, questiona-se sobre a possibilidade de (des)construção da identidade do (d)eficiente criada a partir desse contexto escolar.

O homem enquanto um sujeito multideterminado não está limitado às determinações biológicas de sua espécie, mas é construído enquanto ser único e distinto, a partir das interações travadas no interior de sua cultura. Como um ser social, ele se constitui como sujeito através das relações com outros homens, num determinado contexto cultural e social. Essas relações são permeadas por discursos que imprimem nesse homem percepções e sentimentos acerca de si mesmo e do mundo que o cerca. Esse processo de interiorização do discurso exterior contribui para a construção da identidade humana, para sua subjetivação. Para o sociólogo inglês Nikolas Rose (2001), o conceito de subjetivação diz respeito aos processos pelos quais o sujeito é “fabricado” como sendo de um certo tipo. Dessa forma, a identidade do sujeito é construída também a partir do processo de internalização e das vivências nos diferentes espaços sociais onde ele tem acesso, sendo a escola um locus onde esse processo acontece. O discurso veiculado pela escola autoriza ou desautoriza, legitima ou deslegitima, inclui ou exclui os sujeitos que estão inseridos em seu contexto. “[…] Há, dessa forma, um nexo muito estreito entre currículo e aquilo em que nos transformamos. O currículo, ao lado de muitos outros discursos, nos faz ser o que somos. Pos isso, […] o currículo é a construção de nós mesmos como sujeitos” (SILVA, 1996, p. 167).

Neste artigo, objetivando refletir sobre a escola como locus de construção da identidade da chamada ‘pessoa com deficiência’ essa discussão será travada tomando como base os estudos dos teóricos Pierre Bourdieu, Michel Foucault e Lev S. Vygotsky. A opção por esses teóricos se deu por possibilitarem uma leitura crítica da escola e das práticas desenvolvidas em seu cotidiano.

Bourdieu, sociólogo francês de inspiração marxista, procurou discutir a escola buscando “compreender como o exterior é interiorizado, como a estrutura estruturada se torna estrutura estruturante e como esta, por sua vez, contribui para modificar aquela: ‘a dialética da internalização da externalidade e da externalização da internalidade’” (BOUDIEU, 1977 apud SILVA, 1996, p. 14).

Foucault, filósofo francês considerado pós-estruturalista, buscou entender a linguagem como elemento da constituição da “realidade”, enfatizando sua cumplicidade com relações de poder e destacando os “efeitos de verdade” realizados pela linguagem e pelo discurso.

Vygotsky, “psicólogo” russo de inspiração marxista, baseou-se nas ideias de Adler (psicólogo austríaco, criador da Psicologia da Personalidade), discutindo o sentimento de menosvalia, isto é, a valoração psicológica da situação social na qual é colocada a pessoa com deficiência (VYGOTSKY, 1995). Ele também desenvolveu o conceito de internalização dos processos vivenciados na interação com outros sujeitos da cultura. Esse conceito se tornou imprescindível na discussão sobre Educação.

A LINGUAGEM COMO FORMADORA DE IDENTIDADE
Os significados do vocábulo identidade envolvem os caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa; bem como a qualidade de idêntico, cujo antônimo é diferente, diverso (FERREIRA, 2001). Assim, estabelecer a identidade de algo ou alguém é delimitar ou indicar limites de um ente com respeito aos outros. Portanto, a identidade está ligada à diferença, pois se identifica algo através de sua diferença específica. Desse modo, a diferença é aquilo que coloca momentaneamente em xeque a identidade do sujeito.

Por sua vez, a diferença é determinada por aquilo em que duas coisas diferem, isto é, para se estabelecer a diferença precisa-se de um referente de comparação. O sujeito necessita do outro para nomear a diferença. “A partir desse ponto de vista, o louco confirma nossa razão; a criança, nossa maturidade; o selvagem nossa civilização; o marginalizado, nossa integração; o estrangeiro, nosso país; o deficiente, nossa normalidade” (LARROSA; PEREZ DE LARA, 1998 apud DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 124).

Esse referente, ou seja, o outro que fornece possibilidade para a construção da identidade, passa a ser muito importante para o autorreconhecimento do sujeito, tendo em vista que é através do outro que ele tem um reflexo ou feedback acerca de si mesmo. “Minha identidade me dão os outros, mas eu não sou essa identidade, pois se eles têm de dá-la a mim é porque eu em mim mesma, por mim mesma, em minha intimidade, não a tenho” (PÉREZ DE LARA FERRE , 2001, p. 196).

Assim, o encontro com o outro aponta o sujeito dentro dele ou refletido por ele, como no mito de Narciso, segundo o qual um belo jovem, ao observar o reflexo de sua imagem nas águas paradas de uma fonte, apaixona-se por sua própria imagem e, ao tentar abraçá-la, as águas se turvam perturbando a imagem que, distorcida, não mais parece refletir a imagem amada. Narciso então se afoga, consumido pelo desespero provocado pela intolerância ao que foge à norma e que difere do conhecido. Percebe-se que no encontro com o outro, quando a diferença não é assimilada, ocorre um processo de negação do outro, daquilo que ele difere do próprio sujeito. Esses são momentos de projeção e de busca do sujeito para compreender e assimilar a diferença.

O outro diferente funciona como depositário de todos os males, como o portador das falhas sociais. Esse tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a violência é do violento; o problema de aprendizagem, do aluno; a deficiência, do deficiente; e a exclusão, do excluído” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 124). Assim, com base nesse pensamento, “resolve-se” para o sujeito o incômodo provocado pela diferença, pois ele entende que a diferença é um problema inerente àquele que a possui.

Assumindo esse pressuposto, o ‘outro’ considerado diferente passa a ser fabricado através da linguagem que constitui, produz e forma a realidade. “O modo como as pessoas se vêem – ou […] significam sua existência – também se dá circunscrito socialmente, na tensão entre diferentes vozes, que aos poucos vão encontrando ou não ressonância no indivíduo” (KASSAR, 2000, p. 44).

Na discussão desse processo com relação à pessoa com deficiência, Vygotsky (1995, p. 9) afirma que “o defeito por si só não soluciona o destino da personalidade, senão suas consequências sociais, sua realização sociopsicológica”. Assim, o sentimento de menosvalia é um aspecto das condições sociais do desenvolvimento, é um resultado do discurso social (VYGOTSKY, 1995).

Rubem Alves (2000, p. 33-34), numa história, retrata muito bem o processo de produção de subjetividades e de interiorização do discurso exterior.

Era uma vez um lindo príncipe por quem todas as moças se apaixonavam. Por ele também se apaixonou uma bruxa horrenda que o pediu em casamento. O príncipe nem ligou e a bruxa ficou muito brava. “Se não casar comigo não vai se casar com ninguém mais!” Olhou fundo nos olhos dele e disse: “Você vai virar um sapo!” Ao ouvir essa palavra o príncipe sentiu uma estremeção. Teve medo. Acreditou e ele virou aquilo que a palavra […] tinha dito. Sapo. Virou um sapo. Bastou que virasse sapo para que se esquecesse de que era príncipe. […] O príncipe ficou possuído pela palavra que a bruxa falou. Seu corpo ficou igual à palavra.Esse processo de apropriação das palavras que vão sendo ditas e que transformam a percepção do homem acerca de si mesmo pode ser entendido, numa leitura vigotskiana, através do conceito de internalização. De acordo com Vygotsky (1996), o homem, diferente do animal, acrescenta à experiência hereditária, proveniente da herança da espécie, à experiência histórica, que se baseia na utilização da experiência das gerações anteriores, e a experiência social, adquirida no convívio com outras pessoas. Esse acréscimo é feito a partir da interação com outros sujeitos da cultura e da internalização dos discursos e fenômenos culturais. A internalização trata-se da reconstrução interna dos processos vivenciados externamente, ou seja, da “conversão das relações sociais em funções mentais” (SMOLKA, 2000, p. 27).

Assim, os grupos sociais são tornados ‘diferentes’, através da produção de sistemas de diferenças e oposições. Para Foucault, “o sujeito não é proprietário do seu discurso. […] Aquilo que é visto é uma produção intencional do olhar daquele que vê” (apud EIZIRIK; CORMELATO, 2004, p.11). Numa sociedade pautada pelo processo de diferenciação, o diferente é tido como o problema, o doente, o que não-aprende, o sem limites e, na escola, são chamados de alunos-problema etc. Essas rotulações que demarcam as diferenças emergem não somente no contexto familiar, mas também no contexto institucional.

“Aqueles alunos que não se encaixam no ideal concebido pela escola são trabalhados de forma que se adequem através das tentativas de normalização. O paradigma educacional que sustenta essa prática é o da integração escolar, e a ideologia que a subsidia é de que a escola trabalha da forma correta e que, portanto, os alunos precisam submeter-se a ela. “Em suma, a escola não muda como um todo, mas os alunos têm de mudar para se adaptarem às suas exigências” (MANTOAN, 2003).

Inclusão EscolarA SUBJETIVAÇÃO DO (D)EFICIENTE NO INTERIOR DA ESCOLA

A instituição é um lugar privilegiado no estabelecimento das diferenças, pois nela emergem os conflitos que nascem do encontro dos sujeitos diferentes, em situações diversas. Esse conflito é instalado por conta da tendência homogeneizadora da instituição e da resistência ou impossibilidades concretas dos sujeitos em assumir o que é proposto para eles.

Enquanto instituição social destinada à educação dos indivíduos e que assume função reguladora, disciplinar (rotinas) para controle do aluno (EIZIRIK; CORMELATO, 2004), a escola não tem dado espaço para alguém que, aos seus olhos, seja diferente. O cotidiano escolar exclui, massifica, homogeneíza, nega o movimento, a criatividade e o convívio com a diversidade. A cultura escolar tem sido pautada na ambiguidade de práticas dicotômicas e arbitrárias (classificatórias, normalizadoras etc), pois não leva em conta as necessidades dos sujeitos. A escola trabalha numa polarização que não admite a dialeticidade da existência: a razão é colocada em oposição à loucura, o inteligente em oposição ao “retardado”, o competente em oposição ao incompetente. Esse discurso escolar constitui, forma e regula os sujeitos pedagógicos.

A própria lógica de dividir os estudantes em classes – por níveis cognitivos, por aptidões, por gênero, por idades, por classes sociais etc. – foi um arranjo inventado para, justamente, colocar em ação a norma, através de um crescente e persistente movimento de, separando o normal do anormal, marcar a distinção entre normalidade e anormalidade. Nesse caso, o conceito de nível cognitivo foi inventado, ele próprio, como um operador a serviço desse movimento de marcar aquela distinção; não tem sentido tomá-lo, portanto, como […] natural. A própria organização do currículo e da didática, na escola moderna, foi pensada e colocada em funcionamento para, entre várias outras coisas, fixar quem somos nós e quem são os outros.
(VEIGA-NETO, 2001, p. 111).

A instituição escolar estabelece o estereótipo do bom e, consequentemente, do mau aluno e impõe esse significado através do discurso. O mau aluno é o que difere daquilo que se “deve” fazer. Nesse caso, a ação sobre o diferente é no sentido de excluir, pois a diferença produz um incômodo e constitui-se um desafio para a escola. Esse processo de estranhamento, hostilidade e não acolhimento está muito presente na instituição escolar e o discurso que ela produz não possui efeito apenas simbólico, mas funciona como prática que forma aquilo e aqueles de quem se fala.

A escola busca “moldar/formatar” os indivíduos segundo um mesmo “modelo”, ficando os aprendentes como vítimas do efeito ideológico que a escola produz. A escola é locus onde se produzem sujeitos, identidades e subjetividades sociais, determinadas através das micropolíticas de poder. Portanto, “não é fácil ser diferente no interior das instituições, que desejam o amoldamento a uma massa relativamente uniforme, idêntica, identificada, unificada, monocórdica, quase anônima” (EIZIRIK; COMERLATO, 2004, p. 132).

Na formação da identidade dos aprendentes, a escola utiliza-se de mecanismos sutis de poder e controle como, por exemplo, a linguagem. A linguagem veiculada na escola está implicada na produção desses sujeitos, através do conhecimento que veicula e que produz sentido e significado.

E não são apenas as narrativas contidas em disciplinas como História, Geografia, Português, que estão implicadas nesse processo. Disciplinas tão ‘inocentes’ a esse respeito, como Matemática e Ciências, também trazem, implícitas, narrativas muito particulares sobre […] quais grupos estão legitimamente capacitados a raciocinar ou não […]. (SILVA, 1996, p. 166).

A educação institucionalizada produz consciências e mentalidades através do processo de transmissão pedagógica. “As palavras […] modelam o pensamento assim como o expressam” (BOURDIEU, 1998, p. 213).

No discurso escolar é explícita a proposta de normalização, ou seja, a procura de formatação das pessoas, a busca de uma forma. A instituição tem o papel de instituir, estabelecer, decidir o instituído, a coisa estabelecida. A instituição exige uma certa adaptação para aqueles que dela desejam participar,atribuindo-lhes também um padrão de desenvolvimento que é fabricado e não dado de forma natural. Essa adaptação implica na aprendizagem de suas regras, no autocontrole e não transgressão.

Aqueles alunos que não se encaixam no ideal concebido pela escola são trabalhados de forma que se adequem através das tentativas de normalização. O paradigma educacional que sustenta essa prática é o da integração escolar, e a ideologia que a subsidia é de que a escola trabalha da forma correta e que, portanto, os alunos precisam submeter-se a ela. “Em suma, a escola não muda como um todo, mas os alunos têm de mudar para se adaptarem às suas exigências” (MANTOAN, 2003).

No entanto, a imposição dessas significações como legítimas se dá de forma dissimulada e acaba sendo reconhecida por aqueles que são excluídos do sistema escolar, ou pelos que os representam. Pode-se dizer que o que ocorre de fato é um fenômeno que pode ser chamado de expulsão encoberta (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985). Na verdade, todo esse processo é permeado por relações de força, de poder, no interior das instituições escolares, e a sua eficácia dá-se no “reconhecimento pelos dominados da legitimidade da dominação” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 20). Aqueles que se apropriam da possibilidade de incluir/excluir fazem-no por assumirem uma posição de poder.

É nesse contexto normalizador da escola que a chamada ‘pessoa com deficiência’ é colocada. Nesse espaço, a eficácia do poder escolar está em se produzir subjetividades, em docilizar e disciplinar corpos. As práticas educacionais estão relacionadas a práticas disciplinares de adestramento.

A educação impõe, a si mesma, o dever de fazer de cada um de nós alguém; alguém com uma identidade bem definida pelos cânones da normalidade, os cânones que marcam aquilo que deve ser habitual, repetido, reto, em cada um de nós. (PÉREZ DE LARA FERRE , 2001, p. 196).

Diante desse discurso de normalização, torna-se inquietante pensar como a identidade do (d)eficiente está sendo construída numa escola que considera que o êxito do aluno depende da introjeção da ordem externa. Nesse artigo, o termo (d)eficiente é utilizado para apontar o sujeito que possui alguma “limitação” orgânica (sensorial, motora, intelectual) reforçada por determinados discursos e práticas sociais. Mantoan (2000) utiliza os termos déficit real e circunstancial para abordar essa questão, e Vygotsky (1995) fala de deficiência como produto de condições sociais anormais.

Veja a parte final desse artigo.

* Professora Adjunta do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, CEP. 45.300-000, Amargosa/BA, Brasil.

Fonte: Educação em Revista, Marília, v.9, n.2, p.113-124, jul.-dez. 2008.

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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