Acessibilidade, Inclusão Social e Desenho Universal: Tudo a Ver
Caro leitor,
Vida Independente
O conceito de vida independente é outra peça chave no cenário da Acessibilidade. Ele foi desenvolvido por Ed Roberts e mais sete companheiros, todos com deficiência física, nos anos 60, na cidade de Berkeley, Califórnia, EUA, que ficaram conhecidos como o grupo dos “Tetra Rolantes” (por serem tetraplégicos e se locomoverem em cadeira de rodas). Lembrem-se que os Rolling Stones (tradução: Pedras Rolantes) eram sucesso, nessa época, daí a brincadeira com o nome do grupo. Fundaram o primeiro Centro de Vida Independente, a partir de valores e princípios:
- As pessoas com deficiência é que sabem o que precisam para ter melhor qualidade de vida;
- Suas necessidades variam, como as de qualquer ser humano e, por isso, só podem ser atendidas por uma variedade de serviços e equipamentos;
- A tecnologia assistiva pode significar a diferença entre a dependência e a independência, em determinadas situações;
- As pessoas com deficiência devem viver com dignidade, integradas em suas comunidades;
- A cidadania não depende do que uma pessoa é capaz de fazer fisicamente, mas sim das decisões que ela puder tomar por si só;
- A pessoa com deficiência é que deve ter o controle de sua situação;
- A autodeterminação, a auto-ajuda e a ajuda mútua são processos que liberam as pessoas com deficiência para controlar suas vidas;
- A integração entre pessoas com diferentes deficiências facilita a integração entre pessoas com e sem deficiência;
- Vida Independente é um processo onde cada usuário ajuda a moldar e mantê-la e não um produto para ser consumido indistintamente por diversos tipos de usuários.
O modelo médico
Até aqui, falamos sobre vários conceitos: acessibilidade, desvantagem, Desenho Universal, Vida Independente, inclusão – mas como isso começou? Esses conceitos são novos? Então, como era a vida antes deles?
Desde o início da Humanidade há pessoas com deficiência. Afinal, essa é uma das possibilidades do ser humano, que pode assumir múltiplas características de altura, cor de pele, de olhos e outras tantas. Ao longo da História, a forma como a deficiência foi vista pela Sociedade mudou muito: houve momentos de eliminação, de abandono e outros de respeito e quase veneração, pois era considerada um sinal de contato com os deuses. Alguns povos achavam, por exemplo, que o cego não enxergava “para fora”, mas sim “para dentro”, ou seja, se relacionava com as divindades. O oposto também foi verdadeiro, em alguns locais e épocas: a deficiência era considerada um castigo, um sinal de ruindade, da pessoa ou de sua família. O tempo passou e as concepções foram mudando, não apenas em relação às pessoas com deficiência, mas também em relação aos índios, aos negros, aos ciganos, às mulheres, idosos e outros segmentos considerados “minoritários”.5
“No período entre as guerras mundiais, foi se consolidando o que hoje percebemos como modelo (ou paradigma) e que assumiu contornos mais definidos após a Segunda Guerra Mundial. De acordo com essa concepção, o “problema” estava no indivíduo (a pessoa com deficiência), já que é na sua deficiência (física, mental ou sensorial) e em sua falta de habilidade que reside a origem de suas dificuldades. Portanto, é a pessoa que deve ajustar-se e adaptar-se à sociedade, tal como ela é.
Para fazer este ajustamento à sociedade era preciso contar com a intervenção profissional de um conjunto de especialistas (a equipe de reabilitação: médico, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social e outros), que vão cuidar do “problema” através da reabilitação”.
Para entender a razão do surgimento desse modelo, vale lembrar que as guerras “produziram” um número extremamente alto de pessoas com deficiência, que precisavam ser tratadas e reinseridas na vida social. Eram heróis de guerra, que haviam perdido uma perna, a visão ou tinham outras seqüelas adquiridas na defesa da Pátria e, portanto, mereciam consideração, atenção e cuidados.
Surge, então, o conceito de reabilitação e de suas diferentes áreas: Terapia Ocupacional, Fisioterapia e outros. É curioso constatar, olhando as fotos das primeiras turmas de formandos de Terapia Ocupacional, nos Estados Unidos, que seu uniforme tinha um estilo militar. Essa equipe de reabilitação, de formação multidisciplinar e geralmente liderada por um médico praticamente “se apropria” da pessoa com deficiência e passa a cuidar dela, pois “sabe o que é melhor”. Esse cuidar acaba se estendendo a toda a vida da pessoa, não apenas aos aspectos relacionados à sua reabilitação. A pessoa com deficiência é vista, literalmente, como um “paciente”, que deveria se submeter passivamente às orientações da equipe, assim como a família. Ser paciente significava, entre outras coisas, não ter voz e nem querer, por não ter o saber médico.
São essas características, essa forma de compreender a deficiência e de interagir com a pessoa que recebem o nome de “modelo médico”. Apesar de seus limites, esse paradigma representou um avanço importante e prestou (e ainda presta) valiosos serviços a muitas pessoas. Sua aplicação significou melhoras relativas na qualidade de vida de muitos, além de imprimir uma marca positiva em trabalhos como a Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O modelo social
O tempo passa, o mundo dá voltas e as formas de compreender os fenômenos sociais também mudam. Gradualmente, foi se desenvolvendo o modelo social, como uma resposta ao anterior. Ele transfere o foco da responsabilidade para as adaptações que devemos fazer na sociedade, reconhecendo que as principais barreiras que as pessoas com deficiência enfrentam são o preconceito, a discriminação e os ambientes sem acessibilidade, porque estes foram criados a partir da concepção idealizada de uma pessoa normal, do “homem perfeito”, desenhado por Leonardo da Vinci.
Embora os problemas apontados por esse modelo sejam verdadeiros e infelizmente existam até hoje (discriminação, preconceito e obstáculos), eles não são os únicos que devem ser levados em conta, para assegurar a acessibilidade ao meio físico e também a inclusão. Como vimos acima, para que exista acessibilidade não basta construir rampas. Com o tempo, o entendimento da questão foi se ampliando, graças à prática das organizações de pessoas com deficiência, das discussões de estudiosos, militantes e pesquisadores, que se traduziam em leis, da elaboração de Declarações de Princípios e pela ocupação de espaços na vida social, por essas pessoas.
O modelo da autonomia pessoal ou “vida independente” Como mencionado, esse modelo nasceu nos Estados Unidos, com a participação ativa de pessoas com deficiência desse país. Ele se forma no âmbito da luta dos pacifistas, do movimento feminista, dos hippies e da luta dos negros por seus direitos civis. Seu enfoque é completamente diferente do modelo médico. Desse ponto de vista, a deficiência não é tratada como incapacidade ou falta de habilidade, nem é o objetivo final que se deseja conquistar. O foco dos programas e ações desenvolvidos no âmbito do modelo de autonomia está na situação de dependência do sujeito ante os demais. O problema está no entorno e é nele que acontece o processo de reabilitação. É no social que, muitas vezes, se produz ou se desenvolve a situação de dependência da pessoa com deficiência em relação aos demais.
O conceito de Vida Independente ecoou (e continua a ecoar) nos corações e mentes das pessoas com deficiência, em diversos cantos do planeta, dando origem a CVIs – Centros de Vida Independente. No Brasil, há pouco mais de 20 CVIs, coordenados pelo CVI Brasil; o mais recente foi fundado no Amazonas. Aqui e agora.
Vivemos, no Brasil e também em outros países, um momento de conscientização e de sensibilização da sociedade frente à Deficiência: as escolas começam a abrir suas portas para acolher crianças até então não admitidas como alunos, cultivando a convivência e o respeito à diferença desde cedo; as empresas tomam consciência dos talentos, dos recursos, da criatividade e da eficiência destas pessoas; estabelecimentos comerciais percebem que elas são consumidoras em potencial e, portanto, devem ser tratadas como tal. Teatros, cinemas e espaços culturais percebem que há públicos a serem conquistados. Novelas têm pessoas com deficiência como protagonistas, vivenciando situações inspiradas na vida real e que despertam o interesse dos telespectadores. É comum ouvirmos, no dia seguinte, pessoas comentando o capítulo anterior, no ônibus, no trabalho, na padaria, evidenciando que o conteúdo da novela está “mexendo com elas”, fazendo-as refletir sobre assuntos que provavelmente desconheciam, até então.
Um dos fatores facilitadores dessa mudança é a Informação. Ela tem-se revelado uma das ferramentas mais eficazes neste processo rumo à Acessibilidade, combatendo preconceitos e neutralizando estigmas. Dada sua importância, é preciso facilitar o acesso das pessoas à Informação, investir na sua capacitação para que saibam onde buscá-la, como filtrá-la e utilizá-la para serem cidadãos atuantes e conscientes.
Vivemos na Sociedade da Informação; nela, para sobreviver, é fundamental ter acesso à informação, saber lidar com ela, saber consumi-la e manejar os instrumentos e meios a ela ligados, dentre os quais se destaca a informática. A Informação, como as moedas, tem uma outra face, que é a Comunicação; elas são complementares. Não adianta apenas ter acesso à Informação; ela precisa ser divulgada. Informação que não circula não tem valor. E, para que a Comunicação aconteça, é preciso ter o que dizer.
Acessibilidade e Inclusão: tudo a ver
Como ficou claro, no modelo atual, que adota o princípio da Vida Independente, acessibilidade e inclusão são conceitos chave.
O conceito de inclusão é recente em nossa cultura. Estamos começando a usar esta palavra. Como qualquer situação nova, a inclusão incomoda, desperta curiosidade, indiferença ou negação, encontra adeptos e também críticos; envolve praticamente todas as esferas do social, apontando para a necessidade de repensar, de alterar hábitos, posturas, atitudes, começando pelo plano individual, tirando-nos de nossa costumeira zona de conforto: temos que abrir espaço em nosso mundinho interno para que mais pessoas caibam nele.
Além de recente, este conceito é abrangente: envolve acesso aos bens sociais, culturais e econômicos, à educação, à saúde, ao trabalho, à tecnologia… e assim por diante. Ora, para que as pessoas com deficiência sejam incluídas nas escolas, shopping centers, igrejas, cinemas, empresas, Telecentros, etc. é preciso que eles sejam acessíveis. Se não, elas nem conseguem entrar …e como vão estar incluídas, se ficarem do lado de fora? Olhando para o passado e o futuro Olhando para trás, vemos quantas conquistas temos para comemorar, inclusive no que se refere à acessibilidade. Ao mesmo tempo, constatamos quanto ainda temos a conquistar, nesse processo rumo à construção de uma sociedade inclusiva.
A sociedade acessível garante qualidade de vida para todos; portanto, é um compromisso que deve ser assumido por todos nós, em nossas respectivas esferas de ação e influência. Como diz um site português sobre Acessibilidade: “Para a maioria das pessoas, a tecnologia torna a vida mais fácil. Para as pessoas com deficiência, a tecnologia torna a vida possível.”
Referências
- Ricardo Ferraz, capixaba, cadeirante, tem livros publicados no Brasil, dos quais se destaca “Visão e Revisão, Conceito e Pré-Conceito”, coletânea de cartuns de sua autoria, que está na 3ª edição. Foi destaque na revista FAIREFACE (setembro 2006), da França, de circulação mundial, dentre os vinte empreendedores de todo o mundo que, mesmo com deficiência física, superaram barreiras e ofereceram exemplos de persistência e de sucesso.
- SASSAKI, Romeu Kazumi. “Pessoas com deficiência e os desafios da inclusão”, em Revista Nacional de Reabilitação, 30/09/2004.
- www.saci.org.br/index.php?IZUMI_SECAO=3 Esses pressupostos foram extraídos do endereço www.fsp.usp.br/acessibilidade/desenho.htm, página do I Seminário “Acessibilidade, Tecnologia da Informação e Inclusão Digital” da Faculdade de Saúde Pública da USP, São Paulo, 28 e 29 de agosto de 2001.
- www.cvi-maringa.org.br/sobre.php
- Alianças para um desenvolvimento inclusivo, documento interno, elaborado para Oficina do Banco Mundial e DPI Japão, organização da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e apoio da SEESP/MEC e PNUD, Brasília, 2004.