Após queda de elevador de ônibus, mãe e filha cadeirante voltam ao martírio para entrar em coletivos
No dia em que se completará uma semana que a cadeirante de 6 anos caiu com a mãe do elevador de ônibus, elas precisarão enfrentar de novo o despreparo do transporte coletivo.
Por Sandra Kiefer
Segunda-feira completa uma semana que a cadeirante Vitória, de 6 anos, caiu com o rosto no chão, presa na própria cadeira, que virou por cima de seu corpo. Como sempre, estava na companhia da mãe, a dona de casa Rosineide da Silva Gomes, de 39, que tentava ajudar a filha a subir no ônibus da linha 4103 (Aparecida/Mangabeiras), quando o elevador de deficientes despencou. “Minha filha, para mim, é frágil, como se fosse uma casquinha de ovo, sabe?”, repete a mãe por duas, três vezes. Ela não consegue esconder o pavor que sentiu ao ver a queda de Vitória, batizada com esse nome por ter nascido prematura, aos seis meses. Desde então, é tratada com extremo zelo e carinho pelos pais. “Só senti esse medo ao receber o diagnóstico da minha filha e agora”, diz.
Desde o dia do acidente, mãe e filha estão confinadas em casa, no Bairro São João Batista, na Região de Venda Nova, em Belo Horizonte. Devido ao trauma, Rose evita erguer a cadeira para ultrapassar a soleira da porta. O movimento é equivalente ao que ela faz para entrar com a filha nos coletivos, pelo menos quatro vezes ao dia. “Sinceramente, não sei como vai ser na segunda-feira. Não sei se vou conseguir entrar de novo no ônibus. Aquela cena não sai da minha cabeça”, desabafa a mãe, que desmaiou duas ou três vezes ao ver a filha ensanguentada. As duas foram parar no Hospital de Pronto Socorro João XXIII.
Vitória está bem. Melhor do que a mãe, aliás. Restaram a ela apenas escoriações nas bochechas, testa e no nariz, que não chegou a fraturar, apesar de ter sangrado muito. “Meu dente quebrou”, diz ela, estendendo as mãos, como se pudesse voar. Diz que vai ‘pegar o vento’. Brincalhona, Vitória volta a insistir que machucou a boca no acidente, mas a mãe a desmente. A menina ri, com jeito moleque. Em seguida, volta a puxar assunto com a equipe de reportagem. “Ei!!! 7 a 1. Brasil perdeu”, lembra Vitória, com alguma dificuldade na fala e na visão, um certo déficit de aprendizagem e problemas motores, além de crises convulsivas, que estão controladas.
Naquele dia, Vitória voltou para casa antes da mãe, que ficou internada por mais um dia, em observação. Ao cair para o lado de fora do ônibus, junto com a filha, Rose bateu a cabeça no chão. Precisou se submeter a uma tomografia. Também a menina passou por exames e ultra-som para verificar se a sonda continuava no lugar. “O trocador acionou o elevador, que chegou a subir, mas parou de repente e deu um estalo. Ao dar um arranco, nós duas caímos para fora do ônibus e Vitória bateu com a face no chão. Ao ver o rosto dela banhado em sangue eu caí de novo. Desmaiei. Minha maior preocupação é porque Vitória é uma criança que não pode cair por causa do risco de ter sequelas.”
“Levanta a cabeça, Vitória!”, diz Rose, que corrige a filha todo o tempo. É muito atenta e caprichosa em relação ao desenvolvimento motor da menina, que chegou a ser desenganada pelos médicos. “Ninguém acredita no estágio que ela já atingiu. Vitória tem o pescoço firme, não baba e é muito inteligente”, orgulha-se a mãe, que deixou de trabalhar para se dedicar à caçula. O mais velho tem 18 anos. Já a menina foi planejada pelos pais, que esperaram ter estabilidade financeira e emocional para engravidar.
Rotina
Pelas manhãs, Vitória estuda na escola regular e, à tarde, cumpre agenda cheia de compromissos. Todos os itinerários são feitos de ônibus. Às segundas-feiras, tem equoterapia; nas terças-feiras, projeto especial da escola; nas quartas-feiras, ortopedista; e, nas quintas, estimulação visual. “Acredito que ela ainda vai andar. É só uma questão de tempo”, confia a mãe, lembrando que ambas voltaram para casa, no dia do acidente, com colar cervical no pescoço, para proteger a coluna.
Rose ainda não decidiu se vai ajuizar ação contra a empresa de ônibus. Já recebeu proposta de quatro escritórios de advocacia. Está insegura, com medo. “Brigo com tudo e com todos por ela. Não entendo por que a única linha de ônibus que atende as crianças da Associação Mineira de Reabilitação (AMR) e do Instituto Hilton Rocha conta com elevadores sem manutenção e profissionais despreparados para lidar com cadeirantes”, desabafa. Diz que no dia seguinte ao acidente a viação de ônibus comunicou a ela que estava retirando todos os elevadores de deficientes da linha para manutenção.
O martírio para entrar no ônibus
É hora da saída dos pacientes das sessões de ortopedia na Associação Mineira de Reabilitação (AMR). São 16h30. Uma a uma, vão chegando as crianças no ponto do ônibus da linha 4103, a única que serve ao itinerário. Os dois primeiros alunos conseguem andar sem a ajuda da cadeira, apesar da dificuldade de locomoção. As mães se recusam a falar com a equipe de reportagem. “Nossa situação é boa. Vocês precisam ver o que passam as mães dos cadeirantes. Elas é que são maltratadas”, protestam.
De fato, dos cinco ônibus que passam no intervalo de meia hora de espera, dois não têm elevador para deficientes, dois estão com o equipamento estragado e apenas um funciona adequadamente. Enquanto isso, seis mães e pais esperam com os filhos, todos eles cadeirantes, a chegada do transporte público. Precisam ter mais paciência do que os outros, pois só há vaga para um cadeirante por veículo.
“Você chegaram bem na hora!”, comemora a adolescente Beatriz Rodrigues, de 13 anos, descolada com trança nos cabelos, tênis All Star vermelho e Ipod. Estudante da 7ª série do ensino fundamental, confessa que é cansativo chegar em casa depois das 19h com o pai, o eletricista José Paulo da Cunha. Quando ela se preparava para entrar no ônibus, o elevador falhou. O trocador se ofereceu para ajudar a subir a cadeira no braço. “Não vai dar para ir nessa. Ninguém garante que vão ajudar na hora de descer”, diz o pai.
“Deviam testar o elevador antes de sair da garagem. É tão óbvio”, ensina Ruan Ferreira da Rocha, de 13. Ao ver o sufoco do trocador e do motorista para tentar acionar o equipamento, sem sucesso, o processo deixa de parecer simples. Nenhum dos dois profissionais consegue completar a operação. “Passam três, quatro coletivos até a gente conseguir seguir naquele com elevador funcionando. Se a gente pede ajuda para subir com a cadeira, muitos falam que não é obrigação deles”, denuncia a mãe, Cilene.
Mãe dos cadeirantes Caio, de 7, e Vítor, de 3, a dona de casa Maria José Almeida Santos Ribeiro afirma que, na semana anterior, havia reclamado da falta de manutenção dos elevadores para deficientes em reunião com a presença da BHTrans. Por dia, ela pega oito ônibus com os dois filhos. “Falta respeito com o cadeirante”, protesta ela, que convoca manifestação dos pais de cadeirantes para terça-feira (veja nota ao lado).
O EM tentou ouvir o Sindicato das Empresas de Transporte (SettraBH), mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. Já a BHTrans divulgou nota informando que a empresa concessionária da linha 4103 foi autuada por não ter comunicado o ocorrido. Informa também que há treinamentos específicos, tanto para motoristas e agentes de bordo para operar o elevador e usar o equipamento de segurança, que prende a cadeira. “Em casos muito específicos, como é o da linha 320, no Barreiro, há atendimento especial e gratuito para crianças com deficiência.”
Fonte: Estado de Minas