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Autismo: intervenções psicoeducacionais – Parte Final

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Autismo: intervenções psicoeducacionais Caro leitor,

Dando continuidade ao artigo “Autismo: intervenções psicoeducacionais” da doutora Cleonice Alves Bosa do Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acompanharemos, hoje, a questão de diminuir comportamentos que interferem no aprendizado e no acesso às oportunidades para experiências do cotidiano das crianças autistas. 

Para que possa entender melhor o artigo, recomendo a leitura da parte 1.

Chamou-se a atenção para a “função” dos comportamentos desafiadores, ou seja, as causas subjacentes às alterações de comportamento (e.g. comportamentos agressivos, autodestrutivos) e sua relação com os prejuízos de linguagem e sociabilização.12 Sintomas obsessivos também ajudam a manter esses comportamentos. Há autores que apontam que as técnicas de intervenção devem focar na melhoria das áreas de desenvolvimento, principalmente as habilidades sociais e a linguagem, mais do que na eliminação dos problemas.

Alguns estudos demonstraram que os comportamentos desafiadores têm funções comunicativas importantes,22-23 que são: indicar a necessidade de auxílio ou atenção; escapar de situações ou atividades que causam sofrimento; obter objetos desejados; protestar contra eventos/atividades não-desejados; obter estimulação. O conhecimento de que os comportamentos desafiadores são uma forma de comunicação também permite que as pessoas respondam melhor a esses comportamentos, pois elas sabem que eles são evocados devido à comunicação pobre e, portanto, não são atos deliberados de agressão. Há abordagens que podem auxiliar a reduzir esses comportamentos ensinando a criança a utilizar meios alternativos de comunicação. De fato, a maioria dos estudos que investigam a eficácia dessas abordagens demonstra a diminuição desses comportamentos quando a técnica apropriada é utilizada, que é a identificação da função subjacente dos comportamentos. No entanto, deve-se observar que a maior parte desses estudos utiliza amostras pequenas ou com delineamentos de estudo de caso, do tipo linha de base múltipla ou Análise do Comportamento Aplicada (ABA). Poucos são os ensaios clínicos randomizados que poderiam permitir uma interpretação mais ampla e precisa dos resultados. Uma limitação dessas abordagens é que as causas idiossincráticas ou multifuncionais desses comportamentos não podem ser sempre identificadas.12,24

Há autores que enfatizam o quão importante é não encorajar ou tolerar comportamentos que mais tarde serão percebidos pelos demais como inapropriados. Neste caso, os problemas surgem não devido à natureza do comportamento, mas devido às alterações nas atitudes das demais pessoas.12 Por exemplo, tocar certas partes do corpo dos adultos (os seios, por exemplo) pode ser visto como positivo quando as crianças são pequenas (e.g. interesse nas pessoas), mas se torna um problema na medida em que elas crescem. Alguns tipos de comportamentos obsessivo-compulsivos (e.g. “colecionar” personagens de desenhos animados) podem ser intensamente encorajados por pais e parentes em um momento, mas causar problemas e serem combatidos mais adiante. Evidentemente, isso não significa que essas atividades devam ser proibidas. Elas não devem ser demasiadamente encorajadas, já que podem aumentar e interferir no processo de aprendizagem, se não forem colocadas sob controle. Sem um planejamento cuidadoso, as crianças podem substituir rituais e obsessões por comportamentos ainda mais diruptivos.

É importante que a modificação de comportamentos desafiadores seja feita gradualmente, sendo a redução da ansiedade e do sofrimento o objetivo principal. Existem algumas diretrizes úteis, incluindo o estabelecimento de regras claras e consistentes (quando o comportamento não é admitido ou permitido); modificação gradativa; identificação de funções subjacentes, tais como ansiedade ou incerteza; modificações ambientais (e.g. mudança nas atitudes ou tornar a situação mais previsível) e transformação das obsessões em atividades adaptativas.12

Em relação ao comportamento social em crianças com maior comprometimento, comportamentos inapropriados, tais como gritar, despir-se ou masturbar-se em público, podem ser uma grande fonte de preocupação. Já as menos comprometidas têm como principal fonte de preocupação, sintomas como dificuldades em relação à empatia, compreensão social e interações recíprocas que parecem ser os déficits nucleares no autismo. Esse prejuízo social pode ser mais bem explicado por déficits que, segundo a teoria da mente, são a incapacidade de entender as crenças, pensamentos ou sentimentos das demais pessoas.25 Ainda que o estabelecimento de regras claras para lidar com essas dificuldades seja útil,26 saber como fazer amigos, entender os sentimentos e pensamentos das demais pessoas não são habilidades baseadas em regras que são aprendidas por meio do ensino. Parece que o treinamento de habilidades sociais é mais eficaz quando realizado em uma situação específica, pois cada situação exige uma resposta social diferente. O resultado das intervenções em grupos de habilidades sociais tende a ter efeito mais limitado, devido às dificuldades da criança em generalizar as habilidades adquiridas.

Aprender como interagir com crianças da mesma idade é uma tarefa árdua para crianças autistas. Há alguns estudos que planejaram intervenções utilizando técnicas de encorajamento constante por parte dos professores até intervenções mais livres em grupos que envolvem crianças com desenvolvimento típico. Novamente, nas diferentes intervenções planejadas, ainda que houvesse melhora na freqüência da interação, foi difícil manter a cooperação dos colegas por períodos mais longos de tempo.27 De toda forma, a interação carece de reciprocidade, já que as crianças com desenvolvimento típico têm que adaptar seu comportamento às crianças autistas de acordo com as diretrizes de outra pessoa (e.g. professor). Oferecer oportunidades (e.g. piscina, playground) para as crianças observarem ou interagirem espontaneamente (mesmo que com limitações) com outras crianças parece ser ainda a melhor estratégia.

Há evidência de que o autismo tem impacto sobre a família e que a sobrecarga dos cuidados recai principalmente nas mães.28

Um estudo comparou os perfis de estresse de mães e pais de crianças com autismo.29 O resultado mostrou que as mães das crianças com autismo apresentaram mais estresse do que os pais e sugeriram que isso foi conseqüência das diferentes responsabilidades atribuídas a cada genitor na criação da criança.

Outro estudo demonstrou que as mães das crianças com autismo apresentaram também mais depressão do que as mães das crianças com síndrome de Down, sugerindo que a sobrecarga com o cuidado e a natureza do déficit da criança exercem um papel na depressão materna.30

Um estudo investigando o papel da percepção do estresse parental e da depressão parental na intimidade marital entre pais de crianças com desenvolvimento atípico mostrou um resultado similar.31 Mães das crianças com autismo apresentam estresse e depressão significativamente mais elevados, além de intimidade marital menor do que as mães de crianças com desenvolvimento típico e mães de crianças com síndrome de Down.

Foi demonstrado que os genitores sofrem principalmente devido à demora em chegar-se a um diagnóstico,2 aos comprometimentos especificamente associados ao autismo (e.g. ausência de fala, hiperatividade e crises de birra) e às preocupações sobre o futuro de seu filho.32 A identificação das preocupações parentais e o fornecimento de suporte são cruciais, pois o stress parental pode afetar o desenvolvimento da criança.

Um estudo33 mostrou que as mães de crianças autistas revelaram maiores escores na maioria das dimensões do Questionário Geral de Saúde (GHQ), comparadas às mães de crianças com dificuldades de aprendizagem ou com desenvolvimento típico.32,34-35 Vale a pena notar que, nesse estudo, ocorreram problemas obstétricos na maioria das mães de ambos os grupos clínicos, o que sugere que as preocupações maternas começaram antes mesmo do nascimento da criança. Essas preocupações dão lugar a exigências reais quando são identificados os problemas de desenvolvimento após o nascimento da criança, no caso do grupo com déficits de aprendizado e no grupo com autismo, nos primeiros dois anos. O impacto do fator estressor sobre a família pode ser aumentado se houver um acúmulo de exigências preexistentes ou simultâneas na unidade familiar.36 Argumenta-se que as exigências sobre as famílias concentram-se em cinco categorias: doença de um membro da família, que pode ser acompanhada por necessidades financeiras, maiores dificuldades por ter que cuidar da criança e/ou devido à incerteza que cerca o diagnóstico, tratamento e prognóstico; transições evolutivas que podem coincidir com o estresse; dificuldades prévias que podem ser exacerbadas; maiores jornadas de trabalho para fazer frente às necessidades financeiras; e ambigüidade intrafamiliar e social devido à falta de diretrizes sociais e comunitárias.

Além disso, naquele estudo, a maioria das mães dos grupos clínicos não trabalhava, uma condição que pode aumentar a sobrecarga e o isolamento social. De fato, algumas mães renunciaram a suas carreiras para cuidar da criança. Foram identificados problemas no sono das crianças de ambos os grupos clínicos, como dificuldades em ir dormir e freqüente despertar e agitação. As mães dessas crianças com distúrbios do sono demonstraram escores mais altos de ansiedade/insônia do que as mães de crianças sem esse distúrbio, sugerindo que as mães são afetadas pelos problemas de sono de seus filhos. Alguns teóricos chamam a atenção para o papel das rotinas familiares, em particular as relacionadas à hora de dormir das crianças para evitar o estresse parental e a falta de intimidade do casal.36 Ademais, enfatizam o risco de acumulação de estressores para a saúde dos pais, assim como salientam o papel do suporte social e da qualidade dos sistemas de saúde em amortecer o efeito do estresse sobre os pais. O suporte social é um importante recurso para a família e tem sido visto como um dos fatores-chave para o amortecimento do estresse em famílias sob estresse. A troca de informações no nível interpessoal fornece suporte emocional e um senso de pertencer a uma rede social onde operam a comunicação e compreensão mútua. Os autores afirmam que os profissionais que trabalham com essas famílias podem auxiliá-las a avaliar tanto os fatores de estresse quanto os recursos para solucionar problemas. Esse modelo baseia-se no pressuposto de que as famílias podem ser ajudadas a ser mais resilientes frente à mudança por meio da reestruturação dos papeis, regras, padrões de interação, fronteiras e relações externas com a comunidade. A avaliação das crenças das famílias sobre seus relacionamentos recíprocos, isto é, entre os próprios membros e também destes com a comunidade também pode exercer um papel na exacerbação ou não do estresse.37

Naquele estudo, as mães também relataram o quão útil foi ter suporte, em casa, sobre o manejo dos problemas comportamentais da criança e, em particular, aqueles associados às tarefas cotidianas.38 Demonstrou-se que os sentimentos maternos de auto-eficácia na criação de seus filhos foram afetados por estresse.

Uma das questões mais importantes ao desenvolver-se grupos de apoio para pais é ter em mente que as famílias variam quanto ao tipo de suporte e informação de que necessitam.39 Mesmo dentro de uma mesma família, cada membro pode ter diferentes visões e expectativas, tanto sobre a criança como sobre suas próprias necessidades. Apontou-se que não é suficiente dizer aos pais o que eles devem fazer sem mostrar como fazê-lo.7 É também importante auxiliar os pais e irmãos a reconhecerem a frustração, a raiva e a ambivalência de seus sentimentos como um processo normal de adaptação. Ensinar técnicas de manejo com a criança e prover informações sobre o espectro do autismo em si é tão fundamental quanto focar-se em aspectos emocionais.

Chamou-se a atenção para a importância de aconselhar os pais sobre as vantagens e desvantagens relativas a diferentes tratamentos.12 Ainda que seja importante não parecer tão pessimista, existe também a necessidade de demonstrar que os tratamentos diferem em seus fundamentos e que avaliações sistemáticas ainda têm que ser demonstradas para a maioria deles. Conseqüentemente, seu valor permanece incerto.

 A importância do diagnóstico precoce 

O diagnóstico durante os anos pré-escolares é ainda muito raro, apesar das afirmações de que a intervenção precoce é o melhor procedimento para o desenvolvimento da criança.40 Isso se deve, em parte, à falta de conhecimento sobre o desenvolvimento normal de uma criança, em particular na área da comunicação não-verbal, sendo o prejuízo nas habilidades de atenção compartilhada (e.g. gestos e comentários espontâneos com o intuito de compartilhar curiosidade sobre os eventos ao redor) o marcador mais significativo.

A situação mais comum é que as preocupações dos pais e dos profissionais recaem mais no atraso na fala da criança do que nos aspectos sociais do comportamento.

O diagnóstico preciso não é uma tarefa fácil para o profissional, já que pode haver problemas para distinguir entre crianças com autismo e crianças não-verbais com déficits de aprendizado ou prejuízo da linguagem. No entanto, aos três anos de idade, as crianças tendem a preencher os critérios de autismo em uma variedade de medidas diagnósticas.41 De fato, têm ocorrido esforços de pesquisa para o desenvolvimento e a validação de instrumentos de rastreamento específicos para o autismo em crianças pequenas.42 Atualmente, existem vários instrumentos que podem ser utilizados em crianças em diferentes estágios da vida, tais como: Checklist for Autism in Toddlers (CHAT); Pervasive Developmental Disorders Screening Test (PDDST); Screening Tool for Autism in two year old, Checklist for Autism in Toddlers-23 (CHAT-23) e Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT). Atrasos desnecessários no diagnóstico têm implicações práticas importantes, já que o desenvolvimento de estratégias de comunicação efetivas, ainda que simples, em um estágio precoce da vida auxiliam a prevenir o comportamento diruptivo.12

Mencionou-se antes que os melhores preditores do desenvolvimento subseqüente são tanto o nível de comunicação quanto as habilidades cognitivas durante os anos pré-escolares.7 Desta forma, há razões suficientes para aumentar os esforços na identificação e intervenção para crianças com autismo, o mais precocemente possível. As diretrizes práticas para os profissionais de saúde na comunidade alcançarem este objetivo tem sido foco de atenção de alguns estudos.39,43

Resumo e recomendações

Ao enfrentar um diagnóstico de transtorno invasivo do desenvolvimento, todas as famílias especulam sobre qual tipo de intervenção psicoeducacional é a mais efetiva. A resposta não é tão simples como parece, em contraste com a grande quantidade de tratamentos que têm sido anunciados. Ao revisar a literatura atual sobre as diferentes intervenções que têm sido utilizadas no tratamento do autismo, concluímos que poucas tiveram embasamento empírico. Ainda que algum tipo de melhora possa ser demonstrado em diferentes estudos, os resultados devem ser interpretados com cautela uma vez que estudos metodologicamente bem controlados são muito raros. Aparentemente, não existe uma única abordagem que seja totalmente eficaz para todas as crianças, em todas as diferentes etapas da vida. Ou seja, uma intervenção específica que pode ter um bom resultado em certo período de tempo (e.g. anos pré-escolares) pode apresentar eficácia diferente nos anos seguintes (e.g. adolescência). Isso ocorre, em parte, porque as famílias alteram suas expectativas e valores com relação ao tratamento das crianças de acordo com o desenvolvimento delas e do contexto familiar. Por outro lado, um ponto de consenso na literatura é a importância da identificação e intervenção precoce do autismo e seu relacionamento com o desenvolvimento subseqüente. Finalmente, outra questão que se deve ter em mente é a necessidade de focar-se em toda a família e não somente no indivíduo com transtorno invasivo do desenvolvimento.

Fonte: Revista Brasileira de Psiquiatria Vol. 28 Maio-2006 – SP

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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