Calçadas infames: artigo de Marcos Augusto Gonçalves, colunista da Folha de S. Paulo
Ilustre munícipe, dirija-se à porta da rua de sua residência, estabelecimento comercial, prédio ou cafofo. Observe a calçada. Se mais de 20% da área apresentar falhas, ela terá de ser completamente reformada e adequada aos padrões previstos pela nova legislação, do início do ano. Caso contrário, basta consertar a área danificada. Meça, portanto, com esmero, pois um ponto percentual a mais ou a menos poderá mudar tudo.
Tomadas as medidas, vamos supor que as imperfeições de sua calçada ultrapassem o limite tolerado. Tchan, tchan, tchan! Rufam os tambores e abrem-se as cortinas de um mundo novo, que o poder municipal imaginou para você:
“Se a sua calçada tiver 2 metros de largura, você terá de dividi-la em 2 faixas paralelas, diferenciadas pela cor ou textura. Se o seu passeio público tiver mais de 2 metros, então é preciso que tenha 3 faixas.” Uau! Você sabia?
A primeira faixa é a de “serviço”, e precisa ter, no mínimo, 70 cm: “É onde deverão ser colocados os mobiliários urbanos – como árvores, rampas de acesso para pessoas com deficiência, poste de iluminação, sinalização de trânsito, bancos, floreiras, telefones, caixa de correio e lixeiras”.
Certo.
A segunda faixa é a mais importante, “pois é aqui que garantiremos a circulação de todos os pedestres”. Claro, garantiremos! “Ela deve ter, no mínimo 1,20 m de largura, não apresentar nenhum desnível, obstáculo de qualquer natureza ou vegetação” E atenção: “Essa faixa tem de ter superfície regular, firme, contínua e antiderrapante sob qualquer condição, ou seja, não pode ter qualquer emenda, reparo ou fissura”. Capricha no pedreiro.
A terceira faixa, dispensável em calçadas com menos de 2 m, é “aquela área em frente ao seu imóvel ou terreno que pode receber vegetação, rampas, toldos, propaganda e mobiliário móvel como mesas de bar e floreiras, desde que não impeçam o acesso aos imóveis”.
Se a largura, porém, for inferior a 1,90m, é melhor consultar a subprefeitura de sua região. Provavelmente haverá um coronel no comando, e você poderá, com segurança, pedir – ou estar pedindo – que um técnico faça uma avaliação. “Ele irá orientá-lo sobre a melhor alternativa.”
Tudo isso, caro leitor, é apenas um intróito. Na internet você encontra uma cartilha completa e ilustrada com os mínimos detalhes sobre materiais, inclinação etc. – dos quais irei poupá-lo. E, em tese, não tem muito jeito: ou você morre na reforma ou arrisca-se a uma multa de R$ 300 por metro linear.
A extensão das calçadas de São Paulo é da ordem de 30 mil km. Grande parte, como é fácil constatar, em péssimas condições, com irregularidades, raízes de árvores estourando a superfície, canteirinhos atrapalhando a circulação e revestimentos diversos, ao gosto do freguês. Para não mencionar os extremos da metrópole, onde o calçamento é deplorável -quando existe.
Se para pessoas comuns andar pelas calçadas de São Paulo já é um suplício, o que dizer de cadeirantes ou mães com carrinhos de bebê?
Para os paulistanos, o mau estado dos passeios públicos é um dos dez maiores problemas da cidade, como mostrou pesquisa Datafolha, publicada em julho.
Para resolvê-lo é melhor sair da fantasia legislativa, redistribuir responsabilidades e criar fontes de financiamento. É atribuição da prefeitura zelar pelo passeio público de algumas grandes vias, mas isso não basta. É preciso criar condições para mudar as calçadas infames e tornar São Paulo um pouco mais civilizada.
Fonte: Folha de S. Paulo
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