Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação – Parte Final
Caro leitor,
Veja hoje a última parte do artigo “Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação” dos pesquisadores Antônio Álvaro Soares Zuin e Deborah Christina Antunes, ambos da Universidade Federal de São Carlos. Para que possa entender melhor, recomendo que leia a primeira e a segunda parte desse artigo.
Os desafios à educação
Embora as diversas atitudes de violência em relação ao outro, características do preconceito, produzam a priori uma rejeição quase que automática nos indivíduos, nelas ainda pode-se encontrar um ponto relevante. É claro que ninguém pretende defender atos de barbárie, embora se defenda que a própria rejeição ao debate a respeito de tais atos, bem como a rejeição irrefletida aos próprios atos de barbárie, devam ser objetos de reflexão.
A educação, sem dúvida, é um caminho para a superação da barbérie, no entanto carrega ainda atualmente os momentos repressivos da cultura, como a divisão entre o trabalho físico e o trabalho intelectual e o princípio da competição que é contrário a uma educação realmente humana. Ou seja, a educação atual não avança em modelos ideais de um indivíduo autônomo e emancipado conforme as concepções kantianas, mas explicita as relações de heteronomia estabelecidas no mundo para além dos muros escolares. A autoridade é imposta a partir do exterior.
Porém é esta idéia de emancipação que precisa ser inserida no pensamento e na prática educacionais, na mão contrária à mera transmissão de conhecimentos e à simples modelagem de pessoas, já que ninguém tem o direito de modelar alguém a partir de seu exterior – seja para o bem ou para o mal alguém não pode decidir pelo outro como deve ou não agir. Pensamento e prática educacionais devem estar na direção de produzir uma consciência verdadeira, em que as ações possam ser de fato frutos da razão daqueles que, emancipados, tornam-se capazes de tomar as rédeas das esferas pública e privada de suas próprias vidas (Adorno, 1971/2003).
Não é um plano fácil de ser realizado, principalmente porque o obscurecimento da consciência é resultado da organização em que se vive e da ideologia dominante, ou seja, da totalidade do existente à qual se faz necessário adaptar-se. No entanto, este movimento contínuo de adaptação e ajustamento exigido para se viver em sociedade não pode ser ignorado, pois, caso seja, a educação continuará realizando seu papel de impotente e ideológica. Assim, tanto a entrega cega ao existente, quanto um posicionamento sectário contrário em relação a ele, fazem por vezes o papel de seu mantenedor. O ideal seria um modelo de adaptação que não permitisse ao mesmo tempo a perda de individualidade e proporcionasse a união entre adaptação e resistência pautadas na conscientização e na espontaneidade. Ou seja, que preparasse para a superação permanente da alienação que se baseia na estrutura social, nos modelos de indivíduos socialmente impostos, enfim, nos estereótipos que são um entrave para a experiência, ou melhor, que se colocam entre o sujeito e o objeto com o qual ele deveria se relacionar em sua totalidade (Adorno, 1971/2003).
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Os mecanismos de repressão se tenderiam a se dissolver exatamente por essa conscientização que é, por essência, a constituição da aptidão à experiência, abrindo caminho para a formação que se constitui pela permanente tensão crítica entre indivíduo e cultura. Neste sentido, fica claro que não basta pregar a paz pela via da educação, se o educar em si consiste no mesmo adestramento totalitário vigente nesta sociedade, se o que se chama de paz é um imperativo imposto e alheio aos sujeitos, e que por isso continua a garantir a heteronomia, e a ir, na verdade, à mesma direção da educação da disputa e do individualismo, uma vez que prega a “empatia” e a “tolerância” e legitima, desta maneira, a diferença de uma forma valorativa. Mesmo que a intenção seja legítima, como ficou claro até aqui, de acordo com Adorno et al (1969): “Alguém não pode ‘corrigir’ a estereotipia pela experiência; ele deve reconstituir a capacidade para ter experiências ao invés de prevenir o crescimento de idéias que são malignas, no mais literal sentido clínico” (p. 617, grifo do autor).
É neste sentido que a educação não pode ser postulada exata e pontualmente para a individualidade, pois esta está limitada pela carência de possibilidades sociais de individuação e pelo crescente enfraquecimento da formação do eu, mas deve ser postulada para a recuperação da capacidade de experienciar nas diversas relações sociais vividas. Aqui, compreende-se que é apenas como núcleo que impulsiona a resistência que o indivíduo, neste momento histórico, ainda pode encontrar os meios para manter-se existente (Adorno, 1971/2003).
A antiga, porém ainda atual máxima kantiana, é adotada na busca de uma educação para a emancipação, na busca pelo que Kant (1783/1974) chamou de “indivíduo esclarecido”, capaz de fazer uso público e privado de sua própria razão, indivíduo que ousa saber. A via para isso, para conquistar essa forma de agir no mundo ,parece ser, ainda, a reflexão sobre a realidade efetiva e o desmascaramento de seus determinantes atualmente mitificados, naturalizados. A reflexão a respeito da própria semiformação3, o auto-reconhecimento de seus próprios limites, desejos e contradições, se mostram como um primeiro passo rumo à autonomia, e à educação como projeto subversivo conforme apontaram os estudiosos da Teoria Crítica da Sociedade, lembrando que a reflexão é compreendida como meio, mas não como ponto final.
É assim que a educação contra a barbárie se recupera, mas com um sentido diferente, porque se faz como crítica à sociedade ideológica que se calcifica nos sujeitos no decorrer de seu processo de socialização. Porque se faz sendo proposição de fins realmente transparentes e humanos, enquanto coragem de “servir-se de si mesmo sem a direção de outrem” (Kant, 1783/1974, p. 100). Desta forma, talvez deixem os homens de serem apenas o meio para a conservação do capital, em um momento em que a história continua a inverter a direção da linha do desenvolvimento humano e, apesar de todo desenvolvimento tecnológico e científico, retorna à selvageria.
Considerações finais
Pensar o problema da violência nesta sociedade, e, principalmente, da violência irracional no ambiente escolar, considerado um dos grandes responsáveis pela socialização das crianças, e, segundo ambiente de convívio depois do famíliar, é uma questão importante e urgente. Os motivos são inúmeros no que tange às conseqüências individuais ligadas principalmente ao sofrimento psíquico e à não adaptação. No entanto falta ainda uma questão: por que o sofrimento psíquico e a não adaptação são problemáticos? Talvez muitos se assustem ao se deparar com esta questão, que parece ser tão obvia, mas o silêncio após ela denuncia que ainda não se sabe ao certo a resposta. Alguns podem arriscar “porque isso é barbárie”, “porque é um horror”, ou mesmo “porque todos têm o direito de uma boa vida”, mas são respostas circulares e unilaterais, e não revelam de fato o que está por trás da tão defendida “saúde” do indivíduo. Será mesmo que a preocupação é com a saúde das pessoas, ou seria, na realidade, uma preocupação com aqueles que poderiam denunciar o falso do sistema, que por não se adaptarem não mantêm a ordem social com a qual eles mesmos sofrem?
O próprio conceito de bullying parece exercer esse papel de adaptação, ao classificar a barbárie, e pretensamente controlá-la por essa via. O conceito de bullying coloca tudo em seu lugar, tenta arrumar e justificar aquilo que fere a ideologia democrática, e acaba por mascarar as tensões e contradições que estão na base da própria barbárie. Esse é o risco que se corre ao se utilizar a mera classificação e quantificação.
Ao contrário, as práticas de violência nas escolas devem ser compreendidas por meio da análise social, das formas de organização e das forças objetivas da sociedade, e de como tais forças se materializam e se calcificam nos sujeitos que se desenvolvem neste meio. Estudar a violência requer também este impulso crítico, tanto nas análises teóricas quanto na interpretação dos dados, de modo a mostrar suas múltiplas tensões e questionar o sentido social dos fenômenos singulares encontrados. Por meio desta análise, reveladora das construções sociológicas, políticas, econômicas, ideológicas, talvez se possa pensar numa outra forma de educação que não a regida pelos imperativos que impedem a emancipação ao forçar a repressão e a adaptação, uma outra forma de educação que não seja ela própria barbárie.
Fonte: Revista Psicologia e Sociedade. vol.20 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2008
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