Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação – Parte 2
Caro leitor,
Veja hoje a segunda parte do artigo “Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação” dos pesquisadores Antônio Álvaro Soares Zuin e Deborah Christina Antunes, ambos da Universidade Federal de São Carlos.
Recomendo que leia a primeira parte desse artigo.
O bullying e a razão coisificada
Os estudos com base apenas em dados estatísticos e no diagnóstico de sua ocorrência, as intervenções baseadas em modelos de uma educação pré-determinada, assim como sua fácil assimilação e ampla divulgação pelos meios de comunicação de massa, o desolamento causado por suas conseqüências e a inquestionável necessidade de intervenção via imperativos morais, denunciam, ainda que apenas pelas lacunas, que tal conceito faz parte de uma ciência instrumentalizada e a serviço da adaptação das pessoas para a manutenção de uma ordem social desigual. É importante que se questione a finalidade do conceito criado pelos pesquisadores da área e adotado inteiramente por alguns colegas brasileiros. Pensar até que ponto a classificação possibilitada pela adoção desta tipologia da violência não mascara os processos sociais inerentes aos comportamentos classificados como bullying, ou mesmo admitindo a existência de tais processos, ao tratá-los como naturais, é o primeiro passo que uma ciência deve dar, se o seu objetivo é, de fato, contribuir para o desenvolvimento da humanidade e não para a mera adaptação dos indivíduos.
Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1969/1985) asseveraram que o conhecimento positivista nascido no século XVIII é totalitário, na medida em que na busca pela dominação da natureza, pelo procedimento eficaz, pelo enaltecimento da disciplina, pela transformação da natureza em objetividade, pela busca de poder e controle, os homens pagam o preço da alienação daquilo sobre o que objetivavam exercer seu poder. E a ciência acaba por controlar os próprios homens, pois seu objetivo inicial de contribuir para a diminuição da fadiga, tanto na dimensão espiritual quanto na física, se reifica, uma vez que a técnica não é mais encarada como um produto da atividade humana e se transforma em sujeito, ao passo que os seres humanos que a produziram se tornam objetos.
Segundo Adorno e Horkheimer (1956/1973), quando a doutrina da sociedade relacionada a um ideal inspirado nos princípios absolutos do ser, encontrada principalmente na antiga filosofia grega, ou mesmo do idealismo alemão, se modificou com o intuito de buscar uma sociologia com propósitos de se libertar, assim como as ciências naturais, das teologias e metafísicas, e se deter na verificação de vínculos causais regulares, houve uma ruptura radical que separou a razão em objetiva e subjetiva, de acordo com a denominação de Horkheimer (1974/2002). A primeira se refere à razão que se preocupa com a sua finalidade, sem que para isso deixe de lado os meios de sua realização, e a segunda concerne à razão técnica, instrumental, como denominada posteriormente por Adorno e Horkheimer (1969/1985). Assim, desde Comte, a missão da sociologia positiva (no sentido de ciência pretensamente emancipada dos credos religiosos e da especulação metafísica) é investigar as leis da natureza consideradas imutáveis, importando a exatidão rigorosa da comprovação. Ao pressupor que o movimento social se sujeita, necessariamente, a leis invariáveis, ela se basta com a observação pura, o experimento e o método comparativo (Adorno & Horkheimer, 1956/1973).
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Deste modo, a relação entre a crítica à ciência instrumental, e a classificação estereotipada da violência, fica evidente ao se perceber que ao classificarem os comportamentos, e neste caso, os “tipos” de violência, e, mesmo dentro desses “tipos” classificarem detalhadamente as suas variáveis constituintes, os homens têm a ilusão de que de alguma forma exercem seu controle sobre eles, e que de alguma maneira também conseguem controlar a violência e a natureza, tanto dentro, quanto fora de si. Porém, os fenômenos classificados, contraditoriamente, tornam-se naturais, pois se deixa de lado a raiz de sua existência, convertendo-os em números e dados estatísticos, e, como atentaram Marx e Engels (1932/1998), aparecem como “uma coleção de fatos sem vida” (p. 20). A contradição está exatamente neste ponto: ao voltarem a ser tratados como naturais passam a exercer seu poder sobre o homem e se tornam mais incontroláveis, pois estão agora mascarados sob o rótulo de ciência.
Entretanto, a importância da ciência e da investigação empírica não é, de modo algum, negada. Para Adorno (1972-1980/2001), os diversos procedimentos investigativos dos quais se valem os pesquisadores das ciências sociais e humanas para coletar opiniões, verificar atitudes e comportamentos reais, tais como questionários, entrevistas, observações, discussões em grupo e experimentos controlados, são, de fato, um avanço do método indutivo de se produzir conhecimentos a respeito da realidade, e das ferramentas de ilustração do pensamento social. No entanto, entende-se que não são por si só suficientes. É necessário que se some a eles a análise sociológica das formas de organização e das forças objetivas da sociedade, de modo a, com impulso crítico, interpretar os dados, mostrar suas múltiplas tensões e questionar o sentido social dos fenômenos singulares encontrados como um meio de desencantamento das construções sociológicas que perderam sua relação com a realidade. Tal análise é fundamental, especialmente porque:
Por vezes o fundamental é falseado, quando não completamente ocultado, pelas definições obtidas por meio da abstração. Enquanto que a investigação social empírica se orgulha da objetividade, porque, imitando as ciências naturais, elimina a subjetividade do observador, em boa parte de sua atividade é ela mesma que permanece presa da subjetividade daqueles aos quais dirige seus questionários e enquetes; presa de suas opiniões, atitudes e comportamentos. Ao invés das condições em que vivem os homens, ou de sua função objetiva no processo social, o que acaba revelando-se são suas imagens subjetivas. (Adorno, 1972-1980/2001, p. 127-128).
Observa-se que os pesquisadores, de forma geral, ao dissertarem sobre as supostas “causas” do que chamam bullying, dentre as quais se destacam os fatores econômicos, sociais, culturais e particulares, não as problematizam. Tal atitude desemboca na defesa da expressão genérica do “educar para a paz” utilizada por Fante (2005). Desta forma, as influências familiares, de coleg
as, da escola e da comunidade, as relações de desigualdade e de poder, a relação negativa com os pais e o clima emocional frio em casa parecem considerados naturais e apartados das contradições sociais que os produziram. Consequentemente, o que ocorre é a prescrição do bom comportamento e da boa conduta moral via imperativos de como se deve ou não agir frente àquele que parece diferente, via o velho ditado popular segundo o qual não se deve fazer com os outros o que não se quer que seja feito para si mesmo. Embora tais estudos tenham o mérito de desenvolver classificações e tipologias que tornam visíveis determinadas manifestações de violência, nota-se a importância de que tais definições sejam estudadas à luz das mediações sociais que as determinam. Pois, com a inexistência de uma análise radical, as ações frente à barbárie (denunciada pelos dados quantitativos) se coisificam de forma semelhante à da educação típica da sociedade administrada, que impõe aos homens um modelo de ser e agir visando à sua manutenção e tornando a reflexão desnecessária e improdutiva. Ou seja, ao ir à mesma direção dos imperativos culturais, e reforçando a educação na forma de adestramento, pois é tão instrumentalizada quanto eles, apresenta-se mais uma vez como um padrão de comportamento imposto de fora. Novamente, evidencia-se a hegemonia típica da sociedade “esclarecida”, que, ao invés de possibilitar o desenvolvimento da autonomia, conserva o padrão autoritário da cultura. Deste modo, ela caminha num sentido contrário ao de uma educação que possibilitaria a emancipação dos indivíduos, educação esta voltada para a independência intelectual e pessoal e que, segundo Marcuse (1965/2001), embora amplamente reconhecida como discurso, é em sua face verdadeira um projeto subversivo, pois visa a desmascarar a cultura dominante teoricamente democrática que promove a heteronomia sob o rótulo de autonomia, limitando o pensamento e a experiência ao invés de promover sua ampliação.
Porém, embora aqui se teçam críticas ao conceito de bullying, à ciência na qual se baseia e às conseqüências de sua utilização sem reflexão crítica, não se pretende diminuir a importância do estudo sobre a violência no ambiente escolar, seja entre os alunos ou em qualquer outro âmbito. Mas deve ficar claro que olhar para essa violência e estudar esses fatos requer uma análise não cristalizada que envolva sim sua problematização, ou seja, a análise da dialética entre indivíduo e sociedade, sem deixar-se seduzir pelo falso controle sugerido pelo culto da sistematização pura e simples. Sem dúvida, é um desafio, mas um desafio necessário de ser enfrentado se de fato o objetivo não é a manutenção do sistema, mas sim a real emancipação dos homens e da sociedade.
Acesse aqui e leia a última parte desse interessante artigo.
Fonte: Revista Psicologia e Sociedade. vol.20 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2008
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Bullying: marcas de violência na escola
Olá! Que blog fantástico você tem. Eu trabalho com bullying desde 2006, sou representante do Kidpower International no Brasil. Esta semana participamos de um programa de debates que está disponível em nosso canal no http://www.youtube/KIDPOWERBRASIL
Gostaria de te convidar pra conhecer um pouco do nosso trabalho que está começando em SC.
Trocar idéias e juntar forças é uma ótima ferramenta de trabalho!
Parabéns novamente e um grande abraço,
Juliana Machado Piovanotti.
Olá Juliana! Muito obrigada!
Acessei o You Tube e encontrei os vídeos que dizem respeito ao bullying da KIDPOWERBRASIL. Achei maravilhoso! Parabéns! Durante a próxima semana divulgarei os vídeos no blog, ok?
Se tiver outros materiais, envie, por favor.
Abraços!