‘É muito bom ter uma amiga com autismo na nossa sala’, diz aluno de escola pública
Por Luiza Tenente (G1)
No Brasil, 56.578 pessoas com autismo estão nas salas de aula. Colegas aprendem noções de cidadania e de respeito, além de ajudarem a sociedade a quebrar preconceitos.
A sala da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Cel. Luiz Tenório de Brito, que fica na periferia de São Paulo, a turma do sexto ano tem aula de inglês. Todas as crianças entram correndo e ocupam seus lugares. Com o tumulto, Yasmin fica nervosa e começa a gritar, agitando os braços. Sua melhor amiga, Laura, percebe a tensão da menina e pergunta: “O que foi?”. Como resposta, ela ouve: “Pota”. E então anuncia para a sala: “Gente, vamos fechar a porta! A Yasmin tá aflita com o barulho”. Porta fechada. Yasmin se acalma e começa a prestar atenção na professora.
O diálogo de Laura e Yasmin pode não parecer comum para duas meninas de 10 e 11 anos. Yaya não verbaliza, fala apenas algumas palavras, como “obrigada” e “água”. Sua dificuldade de comunicação é consequência do autismo severo, diagnosticado quando ela era pequena. Mas isso não impede que seus colegas a compreendam: conviver com uma pessoa que tenha o transtorno ensina às crianças e aos adolescentes que é possível ver o mundo sob outra perspectiva. Não é só Yasmin que ganha com o aprendizado e a socialização na escola comum – todos que estão à sua volta também são modificados, dizem os especialistas.
A situação torna-se cada vez mais comum no Brasil, já que a legislação proíbe que escolas recusem a matrícula de uma criança com deficiência. De acordo com o Censo Escolar 2016, há, na cidade de São Paulo, 3.425 pessoas com autismo nas salas comuns, tanto no ensino básico como no Ensino para Jovens e Adultos (EJA). No estado de São Paulo, são 13.414, e no Brasil, 56.578 indivíduos com o transtorno que estudam em instituições regulares, junto com quem não tem autismo. Isso sem contar os casos de Síndrome de Asperger, que também integram o Transtorno do Espectro Autista – no Brasil, são 10.332 alunos com esse quadro que estão estudando nas escolas comuns.
Siglia Camargo, professora da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Autismo e Inclusão (Gepai), explica que conviver com alguém que tenha autismo traz um aprendizado sobre a importância de respeitar as diferenças. “Todos somos diferentes e essas crianças são muito mais capazes do que imaginamos”, diz. “Aprendemos com elas que comportamentos do autismo que julgamos como agressivos são uma maneira de expressar ou de reagir ao estímulo do ambiente.”
Ao ter um colega com autismo, os demais estudantes passam a enxergar com naturalidade o comportamento e as características do amigo. “Eles aprendem noções de tolerância, de criatividade, de perseverança, de respeito e, mais importante, entendem que o mundo pode ter perspectivas diferentes”, explica Alysson Muotri, cientista brasileiro que pesquisa a cura do autismo na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.
As amigas de Yasmin contam que, quando a conheceram, não sabiam o que era autismo. Pesquisaram na internet e conversaram com os professores da escola para entender os principais sintomas do transtorno.
“As crianças aprendem muito com a Yasmin nessa questão social, de perceber o outro, de entender o que o outro está passando. A Yasmin não verbaliza e isso fez com que a sala desenvolvesse a sensibilidade de perceber o outro sem que ele fale”, conta Ana Maria de Oliveira, professora por dois anos da turma, nas séries iniciais do ensino fundamental. A docente se especializou em educação especial e atualmente estuda neurociência na universidade, para melhorar sua capacitação em lidar com a educação de autistas. “É um aprendizado eterno”, diz.
Ana Maria ressalta também que os ganhos não ocorrem somente na socialização – abrangem também a aprendizagem. Em todas as aulas, os colegas de Yasmin prestam auxílio à menina: ajudam a desenhar, a explicar o conteúdo, a prestar atenção, a aprender a pronunciar novas palavras, a usar o computador e a entregar as lições, por exemplo. Como cada aluno da sala está em um nível de desenvolvimento diferente, a troca entre todos beneficia que aprendam ainda mais. “A partir do momento em que ensinam algo para a Yasmin, a autoestima deles melhora, porque percebem que estão ajudando alguém. E também vão relembrando a matéria para passar para a amiga, o que é ótimo para estudar”, diz a professora.
Quebra do preconceito
É importante lembrar que as pessoas que têm autismo não são iguais entre si – cada uma possui uma história de vida, uma personalidade e um determinado quadro de sintomas.
Existem alguns sinais do transtorno que são mais comuns no autismo clássico e que podem atrapalhar a convivência em sociedade. “As dificuldades são inúmeras e tudo se exacerba na adolescência: chacoalhar as mãos, não ter interesse nos assuntos mundanos, não controlar o balanço do corpo, ter problemas na comunicação (como no entendimento de metáforas ou de piadas)”, afirma Muotri.
Conhecer os sinais do autismo ajuda a combater o preconceito e as visões rotuladas sobre o transtorno. “Como frequentemente agem de forma inusitada, é natural que os autistas despertem a curiosidade da comunidade e isto pode e deveria ser sempre visto de forma natural, positiva e enriquecedora pelos dois lados”, diz o cientista brasileiro.
Laura conta que, certa vez, alunos de outra turma da escola derrubaram biscoitos no chão. Yasmin tentou pegá-los para comer e foi impedida pela amiga. Os colegas não entenderam: “Mas ela é autista, qual o problema de comer algo do chão?” Laura explicou a eles: “Não é porque ela é autista que vai ser tratada dessa forma. Vocês não comeriam o biscoito sujo, então ela também não vai comer”, conta a menina.
As crianças que, como Laura, conhecem uma pessoa com autismo tendem a combater o preconceito das demais. As famílias, inclusive, são transformadas. “Existe um medo de que o filho seja prejudicado por ter um colega com autismo. É uma desinformação. É preciso que a escola olhe para essa resistência e informe e tranquilize os pais sobre as suas principais dúvidas”, explica a professora Siglia.
A docente Ana Maria, antes do início do ano letivo, fez um trabalho de conscientização com os pais das crianças e explicou a eles sobre o autismo. Atualmente, todos colaboram para a inclusão. “Acredito numa sociedade melhor. As pessoas com deficiência estão aparecendo, tendo seu espaço, e com isso todos aprendem a ter respeito, solidariedade e empatia”, diz.
Sintomas
A seguir, veja os principais sintomas do autismo clássico, um dos quadros do Transtorno do Espectro Autista (TEA):
Dificuldade de interação social: problemas no desenvolvimento de amizades, anomalia em comportamentos não-verbais (como não olhar para a pessoa com quem está falando), falta de compartilhamento de experiências, ausência de reciprocidade emotiva (não reagir diante de um colega machucado, por exemplo). As brincadeiras podem ser estereotipadas, com gestos repetitivos.
Problemas na comunicação: a pessoa pode não desenvolver linguagem oral ou só falar o que tem utilidade mínima. Pode haver dificuldade na compreensão de significados do discurso.
Alterações nos interesses: pode haver uma resistência grande em mudar a rotina, provocando acessos de nervosismo. As brincadeiras também são diferentes: ao brincar com um carrinho, em vez de empurrá-lo, é comum concentrar-se somente na rodinha, por exemplo.
Além desses, existem outras características menos comuns, como alterações no sono e dificuldades na alimentação.
Fonte: G1