Educação Médica e Atenção Integral à Saúde da Pessoa com Deficiência
Caro leitor,
O texto abaixo da profª Luiza Santos Moreira da Costa, da Universidade Federal Fluminense, vem ao encontro do artigo da advogada Deborah Prates “Humanização nos hospitais: Acessibilidade Atitudinal Já” e o artigo do amigo Deoclécio de Oliveira “Médicos: o que seria de nós sem eles?!“.
“Os médicos desconhecem as particularidades que diferenciam um corpo com e sem deficiência, o que dificulta a redução de riscos de surgimento de problemas de saúde evitáveis ou de procedimentos inadequados, que podem até mesmo levar à morte do paciente…”
Em 2012, a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência completará dez anos de criação, embora a atenção prestada à saúde desse grupo tenha se mantido praticamente inalterada. A atenção integral à saúde das PcD pressupõe uma assistência específica não apenas à sua condição, mas também a agravos comuns a qualquer cidadão, incluindo sua participação em ações de promoção à saúde e prevenção de doenças. Logo, médicos de qual- quer área ou especialidade já tiveram ou certamente terão pacientes com algum tipo de deficiência: intelectual, sensorial ou física. Considerando que as PcD procuram atendimento não somente para si próprias, mas também para filhos e pais, multiplicam-se as chances de encontro entre elas e os médicos.
O Censo de 2000 já indicava a existência de aproximadamente 25 milhões de brasileiros com alguma deficiência (14,5% da população)*. Há previsão de crescente aumento desse número a partir de indicadores demográficos, como o envelhecimento da população e a redução da mortalidade infantil, dentre outros.
Relatos de PcD denunciam uma realidade bem distante da atenção integral preconiza- da. Há falta de esclarecimento aos familiares sobre as possibilidades de desenvolvimento da PcD e formas de superar as dificuldades encontradas, ou de orientações à estimulação precoce. Os médicos desconhecem as particularidades que diferenciam um corpo com e sem deficiência, o que dificulta a redução de riscos de surgimento de problemas de saúde evitáveis ou de procedimentos inadequados, que podem até mesmo levar à morte do paciente, como a hiper-reflexia autonômica – intercorrência frequente em pessoas tetraplégicas. Cada vez mais mulheres com lesão medular optam por engravidar, demandando dos obstetras preparo no acompanhamento de uma gravidez com risco de trombose, infecção urinária de repetição, úlceras de pressão à medida que a gestante ganha peso e hiper-reflexia autonômica. É raro as PcD encontrarem médicos com capacidade técnica aliada à abertura para negociação quanto ao cuidado com a saúde e que se preocupem com questões relacionadas ao serviço, como redução do tempo e da energia despendidos pelas PcD para receber atendimento médico. Por isto, elas acabam tendo que escolher qual dessas capacidades consideram prioritária, no momento, em detrimento das demais.
O texto da Política Nacional de Saúde da PcD sinaliza a inclusão de disciplinas e conteúdos de reabilitação e atenção à saúde das PcD nos currículos de graduação da área da saúde, ao passo que o Artigo 25 da Convenção dos Direitos das PcD, de 2008, trata da conscientização dos profissionais de saúde acerca dos direitos humanos, dignidade, autonomia e necessidades das PcD. Apesar disso, a atenção integral à saúde das PcD ainda representa uma área de interesse negligenciada pelas escolas médicas, mas não apenas por elas. As inclusões no currículo, hoje, embora esparsas e desarticuladas, se devem a iniciativas pessoais de docentes preocupados com a saúde desse grupo da sociedade. Tais iniciativas, no entanto, estão sujeitas à descontinuidade. Considerando que as PcD devem ser percebidas como parte integrante da diversidade humana, cada disciplina deveria fazer menção às especificidades das PcD em relação ao tema abordado, ao invés de se criar uma disciplina à parte para tratar de questões relativas a esse grupo.
Torna-se urgente a parceria entre o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação, a Associação Brasileira de Educação Médica, entidades de defesa dos direitos das PCD, reitores, diretores de faculdades, órgãos diretivos colegiados e outros organismos, visando ao compromisso com a implantação de uma política educacional que não mais exclua as PCD. O texto das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, inclusive, deveria mencionar, especificamente, a deficiência como um tópico importante.
A Associação Brasileira de Educação Médica teria papel decisivo, buscando se associar aos organismos/associações/ conselhos voltados para a defesa dos interesses das pessoas com deficiência e mesmo àquelas voltadas para a defesa dos direitos humanos, assumindo uma posição de vanguarda ao lado dessas outras organizações e exercendo sua liderança política entre as escolas médicas e entidades governamentais.
*Segundo o Censo 2010, 45 milhões de brasileiros disseram ter algum tipo de deficiência, ou seja, quase 24% da população brasileira.
Texto publicado na Revista Brasileira de Educação Médica. 35(3)- 301-302; 2011.