Estudo da qualidade de vida em pessoas com lesão medular traumática – Parte 3
Dando continuidade a última parte do artigo “Estudo da qualidade de vida em pessoas com lesão medular traumática” dos pesquisadores Janaina Vall(1), Violante Augusta Batista Braga(2) e Paulo César de Almeida(3), veja hoje, os resultados e a discussão a respeito dessa pesquisa.
Resultados
O resultado da avaliação da qualidade de vida das pessoas portadoras de lesão medular traumática está resumida na Tabela 2 e ilustrada no Gráfico 1. Observa-se que as porcentagens dos domínios variaram entre 43,36 a 63,16%, evidenciando o domínio de “aspectos sociais” como mais comprometido nos pacientes com lesão medular traumática.
Discussão
A qualidade de vida é comprometida como um todo nas pessoas com lesão medular traumática, visto que a porcentagem máxima não ultrapassou 65%. Analisando literaturas sobre o tema, são vários os estudos, embora não brasileiros, que fazem referências importantes em relação à qualidade de vida dos lesados medulares. Unalan et al.11, realizaram na Turquia um estudo com 50 pacientes sobreviventes à lesão medular morando em uma comunidade juntamente com 40 pessoas com a mesma idade sem lesão medular. Ambos os grupos preencheram o SF-36(questionário genérico multidimensional, formado por 36 itens). O escore de qualidade foi significativamente baixo no grupo dos lesados medulares.
Tate et al.12, estudando mulheres com lesão medular traumática, referem baixa capacidade funcional e de bem-estar relacionados à qualidade de vida, corroborando com nossos resultados, pois a capacidade funcional ficou com uma porcentagem pouco acima de 50%.
Em estudo desenvolvido nos EUA, os autores aplicaram o SF-36 em 215 pacientes com lesão medular traumática e correlacionaram principalmente os aspectos físico e mental, encontrando correlação apenas entre o componente físico e o grau de incapacidade do paciente, ou seja, quanto maior a gravidade do comprometimento decorrente da lesão medular, menor o escore do aspecto físico relacionado com a qualidade de vida13. Em nosso estudo a porcentagem no domínio “aspectos físicos” foi 57,03%, o que caracteriza um comprometimento importante no contexto da qualidade de vida.
Outro estudo desenvolvido em Atenas, na Grécia, com 38 pacientes com paraplegia, encontrou correlação entre auto-estima, satisfação com a vida e solidão, ou seja, pessoas com alta auto-estima possuem alta satisfação com a vida e menor sentimento de solidão. Ou seja, o estado mental do indivíduo, que engloba a auto-estima, está diretamente ligada ao aspecto emocional de satisfação com a vida e ao aspecto social de solidão14. Isso porque os adultos com incapacidades que reportam boa qualidade de vida construíram e mantêm um balanço entre corpo, mente e espírito, bem como harmonia com o meio ambiente15. Em nosso estudo os domínios “aspectos emocionais” e “saúde mental” também estão comprometidos, com porcentagens de 59,38% e 62% respectivamente, demonstrando que este equilíbrio entre corpo e mente não está ocorrendo, propiciando baixa qualidade de vida, refletida em todos os seus domínios.
Da mesma forma Brillhart16 também estudou a satisfação com a vida e espiritualidade entre 230 pessoas com lesão medular de longa data. Ele concluiu que há significativa correlação positiva entre satisfação com a vida e fatores psicológicos e espirituais, de acordo com o instrumento aplicado na pesquisa. Enfatiza também o papel do enfermeiro reabilitador como suporte espiritual ao paciente, direcionando-o a redefinir suas vidas, explorando oportunidades.
Embora todos esses estudos apontem para um comprometimento global da qualidade de vida, as pesquisas de Kreuter et al.17 desenvolvida na Austrália e na Suécia e Edwards et al.19, no Canadá, confirmam maior comprometimento do domínio “aspectos sociais” nos pacientes com lesão medular, corroborando os resultados do presente estudo, no qual a porcentagem de qualidade de vida neste domínio não ultrapassou 43,36%, sendo o menor índice de todos os domínios avaliados.
Da mesma forma, Whiteneck et al.18 também aplicaram algumas escalas, dentre elas a de satisfação com a vida em 2726 portadores de lesão medular e obteram como resultado que fatores ambientais podem estar ligados à incapacidade, mas que esta não impede que tenham uma grande satisfação com a vida, exceto no quesito participação social. Já Hammell19 fez uma revisão de literatura explorando os conceitos de qualidade de vida ligados a lesões medulares entre o período de 1990 a 2003. A maioria dos estudos focaram pacientes com diferentes níveis de lesão medular e demonstraram, ao contrário do estudo anteriormente citado, uma insatisfação com a vida após a lesão, principalmente relacionado a uma desvantagem social.
Outro estudo que corrobora nossos resuldados é o de Johnston et al.20 que, estudando a qualidade de vida através do SF-12 entre indivíduos com lesão medular, sugerem que parte dos pacientes estudados possuem baixa escolaridade, principalmente porque, além das restrições motoras, também há restrições sociais que impedem os pacientes de seguirem com seus estudos. Leduc e Lepage, no Canadá, estudaram 587 pacientes portadores de lesão medular membros do Quebec Paraplegic Association. Eles concluíram que pacientes mais jovens, empregados e não hospitalizados possuem melhor qualidade de vida, ou seja, esses pacientes possuem uma melhor inserção social, acarretando melhor qualidade de vida21.
Essas dificuldades e comprometimento da qualidade de vida, observados nos pacientes com lesão medular, devem-se ao fato de as modificações provocadas pela lesão ainda não poderem ser revertidas pelos recursos científicos atuais, embora já tenha progredido muito nos últimos anos2. Um estudo com 45 pacientes em condições crônicas de saúde, demonstrou que o indivíduo se depara com “novas incumbências” e problemas de ordem social, econômica e pessoal, muitas vezes de difícil enfrentamento. Além disso, demonstrou também que as alterações no estilo de
vida do paciente podem ser gradual ou cumulativa, mas não ocorrem todas ao mesmo tempo22.
Os dados desta pesquisa apontam para a qualidade de vida com uma conotação individual e temporal, tendo relação com os sentimentos e percepção que o indivíduo tem de si mesmo e do mundo que o cerca. Avaliar aspectos relativos à qualidade de vida de alguém requer que se procure captar do outro estas percepções e que se disponha de instrumentos, de modo mais fidedigno possível, que contemplem aspectos interelacionados e que considerem a complexidade do ser humano e a sua relação com o universo.
A avaliação da qualidade de vida é importante porque amplia as decisões da equipe de saúde, as quais se estendem aos programas e políticas assistenciais. Muitos autores são unânimes em afirmar que o fracasso de muitos programas, se deve ao fato de que eles estão ancorados na percepção dos profissionais de saúde, com intervenções desconectadas das condições sociais de qualidade de vida e, desta forma, havendo pouca investigação e valorização das reais necessidades do paciente, suas crenças e motivações23.
O SF-36, como instrumento genérico de avaliação da qualidade de vida, mostrou-se adequado à amostra estudada, podendo auxiliar não só na definição de prioridade bem como a locação de recursos de forma mais apropriada pelo sistema de saúde, além de direcionar as ações da equipe interdisciplinar de saúde, principalmente no contexto da reabilitação.
Como recomendações para novos estudos sobre o tema, sugere-se o desenvolvimento, tradução, validação e aplicação de instrumentos para avaliar a qualidade de vida desta população, sendo que esses instrumentos devem ser validados em diferentes situações, ou seja, em diferentes centros de pesquisa e por diferentes pesquisadores em diversas populações. Também, recomenda-se que se desenvolvam mais estudos, com amostras maiores e em culturas diferentes, envolvendo não só pacientes paraplégicos, mas tetraplégicos com lesões não traumáticas. Paralelamente aos trabalhos quantitativos, também é interessante o desenvolvimento de pesquisas com enfoque qualitativo, visto que o tema é subjetivo e uma abordagem só complementa a outra. Além disso, deve haver mais envolvimento de pesquisadores e da sociedade como um todo no tema, a fim de planejar ações que vão de encontro com a melhora da qualidade de vida dos portadores de lesão medular, principalmente no que se refere à reinserção social, fator mais preocupante nos domínios da qualidade de vida, evidenciado nesta pesquisa.
1)Enfermeira, Mestre em Enfermagem, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza CE, Brasil (UFC)
(2)Enfermeira, Doutora em Enfermagem, UFC
(3)Bioestatístico, Doutor em Saúde Pública, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza CE, Brasil (UECE)
Fonte: Arquivos de Neuro-Psiquiatria. vol.64 no.2b São Paulo June 2006.
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