Experiências de um repórter cego na Europa
Outro ângulo
Por Lucas de Abreu Maia
Escolher o companheiro de viagem certo e um planejamento detalhado ajudam o turista com deficiência a superar obstáculos. Nosso repórter descobriu facilidades e falhas no acesso a pontos turísticos e constatou que não é preciso ver para curtir a Europa.
A gravação de uma voz feminina anuncia pelo sistema de alto-falantes, enquanto o trem diminui a velocidade: “Esta estação tem acessos sem degraus”. A estação é King’s Cross St. Pancras em Londres, uma das mais movimentadas do mundo. E o anúncio, que deveria ser regra, é exceção. Em meio ao esforço da capital britânica para se modernizar a tempo de receber as Olimpíadas do ano que vem, a cidade encara um desafio – compartilhado com toda a Europa: tornar acessível a todos seu transporte público sesquicentenário e sua arquitetura milenar.
O continente conhecido pelos extensos benefícios sociais e pela preocupação com os direitos humanos ainda tem uma série de barreiras ao turismo de pessoas com deficiência. A culpa, neste caso, é da história. Igrejas, castelos, ruelas e museus são os mais belos do mundo, mas foram construídos em uma época em que a palavra “acessibilidade” sequer fazia parte do vocabulário vigente.
Hoje, embora a União Europeia encampe um esforço coletivo para adaptar a infraestrutura turística, muito ainda precisa ser feito. Um estudo da Comissão Europeia apontou o transporte urbano e edifícios públicos como os maiores obstáculos a pessoas com deficiência. A pesquisa, feita em sete países, colocou Áustria e Noruega nos primeiros lugares do ranking da acessibilidade. Em último ficou a Itália, com Reino Unido e Espanha a meio caminho.
Não há, contudo, razões suficientes para o turista com alguma deficiência física desistir de viajar para o Velho Continente. Se este for o seu caso, escolha o companheiro de viagem certo (acredite, você precisará dele), planeje o roteiro com antecedência e tenha muita paciência todas as vezes em que alguém não entender o que você precisa. Talvez você não consiga subir ao domo da Catedral de São Paulo (não há rampas de acesso para cadeirantes) para ver Londres do alto, mas poderá desfrutar, tanto quanto qualquer outra pessoa, a cultura e história europeias.
Quer descobrir como? Nesta e nas páginas aqui linkadas, o leitor encontra as experiências e recomendações – um tanto idiossincráticas – de um repórter cego que passou um mês em um périplo europeu que envolveu cinco países.
Comunicação
A todo o tempo, a pessoa com deficiência precisa perguntar, esclarecer e explicar. O europeu, como diz o senso comum, é mesmo um povo educado – e, ao contrário do que diz o senso comum, pode ser bastante solícito. Se o viajante conseguir expor suas dúvidas e necessidades, será ajudado. Isso significa que falar bem ao menos inglês é essencial. Se este não for o seu caso, considere contratar um guia local, que lidará com a maior parte das dores de cabeça por você.
Hotelaria
Nas capitais, não são raros os hotéis com quartos adaptados a cadeirantes. Entretanto, o ideal é fazer a reserva com antecedência e explicar claramente suas necessidades. Para os mochileiros, há albergues prontos para receber deficientes, mas são raros e costumam cobrar pelo conforto extra. Sites como booking.com ou hostelworld.com apontam ao viajante os hotéis e albergues acessíveis.
Nas cidades menores, encontrar um quarto adaptado é consideravelmente mais difícil. Neste caso, uma opção é fazer passeios de um dia só, voltando para passar a noite na metrópole mais próxima.
Saiba Mais
Avião: passageiros na cadeira de rodas têm preferência no embarque. Cães-guia são aceitos, com documentos que comprovam a saúde do animal, coleira e focinheira. Alguns países exigem quarentena no desembarque. Confira com a companhia aérea
Cruzeiro: não há impedimento ao uso de cadeira de rodas a bordo de navios de cruzeiros, que costumam ter cabines adaptadas. Cães-guia são aceitos
Trem: os mais novos, caso da Alemanha, têm banheiros adaptados. O mesmo vale para os vagões turísticos da Serra Verde Express (serraverdeexpress.com.br), que fazem passeios em destinos brasileiros.
Ônibus adaptados, semáforos sonoros e trem com alto-falante
A Europa inaugurou suas primeiras linhas ferroviárias (o que inclui o metrô) durante a revolução industrial, nos séculos 18 e 19. O metrô de Londres – o mais antigo do mundo – começou a funcionar em 1863. Porém, se a rede de trens entre cidades e países foi completamente atualizada na Europa ocidental na última década, o transporte urbano ficou a cargo das cidades, que acabaram se modernizando cada uma em seu próprio ritmo.
Londres, Paris e Bruxelas têm em comum redes metroviárias que atendem toda a cidade. Mas, ao mesmo tempo, a maior parte das estações ainda é inacessível a cadeirantes. O mesmo ocorre com Madri, onde grandes escadarias se transformam em transtorno até mesmo para quem leva um carrinho de bebê.
Já em Berlim, o transporte público é complexo – uma combinação de metrô, trem urbano, ônibus e tram (que nada mais são que nossos bondes, ainda em pleno uso na Europa). O sistema, todavia, funciona com perfeição e é acessível.
Os ônibus são quase sempre livres de barreiras: em Copenhague, a bela capital dinamarquesa, os veículos são adaptados com um sistema de rebaixamento que possibilita a entrada de qualquer pessoa sobre rodas – de cadeirantes a carrinhos de bebê. Mesmo os famosos ônibus de dois andares ingleses são bastante acessíveis.
Já Amsterdã tem como principal meio de transporte o tram, sem grandes dificuldades para cadeirantes. No entanto, os barcos – onipresentes na cidade dos canais e um dos principais programas turísticos da capital holandesa – podem não ser tão acessíveis.
Para os cegos, há menos preocupações quando se trata de transporte público. Todas as cidades contam com um excelente sistema de alto-falantes que anunciam as paradas de ônibus e estações de metrô. Também são comuns letreiros com avisos luminosos, bastante úteis para visitantes surdos.
Além disso, são muitos os semáforos com avisos sonoros para ajudar aos cegos a atravessar a rua. Mas, como a geografia das cidades europeias nem sempre é fácil de ser compreendida por um cego em uma primeira visita, eles podem confundir mais que ajudar. Na dúvida, peça auxílio.
Nos museus, tours especiais e relíquias ao alcance das mãos
Durante séculos, a arquitetura foi a principal ferramenta dos monarcas europeus para ostentar poder – uma disputa evidente nas torres altíssimas e igrejas monumentais. Relutantes em alterar edifícios históricos, os governos locais ainda não encontraram alternativas que os tornem mais acessíveis. Mesmo em prédios modernos – como a Torre de TV de Berlim, de 1969 -, podem não haver opções aos degraus.
Nos museus, não há regra. Quem visita o site do Museu Britânico, por exemplo, descobre que há visitas guiadas para cegos todos os dias, às 11 horas, em que é possível tocar objetos egípcios. Muitos funcionários, contudo, ignoram sua existência. E esta não é uma exceção. Por isso, sempre pergunte pessoalmente. Com sorte, o visitante cego tocará em relíquias como as autênticas esculturas gregas do Neuis Museum e os portões assírios no Museu Pergamon, ambos em Berlim.
Nem sempre há rampas ou elevadores de acesso para cadeirantes. Embora a capital alemã esteja reformando seus museus estatais para torná-los mais amigáveis a deficientes, muitos – entre eles o mais popular, o Pergamon – continuam cheios de degraus inescapáveis. Antes de desistir, pergunte por elevadores de serviço: eles quase sempre estão lá.
As galerias de arte podem ser entediantes para quem não enxerga. Uma saída é pegar os audioguias e escutar as explicações detalhadas dos quadros que você não consegue ver. Os aparelhos costumam ser grátis para cegos e podem ser bem úteis para descrever igrejas e prédios históricos.
A maior parte das atrações, aliás, oferece descontos a pessoas com deficiência. Na Alemanha, por exemplo, o visitante com deficiência normalmente paga o próprio ingresso, mas leva o acompanhante de graça.
Passeios a prédios do governo estão entre os mais acessíveis. Os edifícios da União Europeia em Bruxelas têm entradas adaptadas a cadeira de rodas e visitas guiadas em várias linguagens de sinais. Já em Edimburgo, o parlamento escocês (aberto em 2004) foi construído respeitando padrões de acessibilidade. A beleza da arquitetura moderna do prédio em si já vale a visita, e, para os turistas cegos, há um mapa da Escócia em alto-relevo.
Também sem contraindicações são os passeios ao ar livre. Caminhe sem pressa pela Unter den Linden, principal avenida de Berlim; perca tempo no parque St. James, próximo ao parlamento inglês; flane pelos canais de Amsterdã; suba a colina de Calton para sentir Edimburgo a seus pés. Estes passeios são gratuitos, não têm obstáculos e oferecem a melhor percepção da vida nas capitais europeias. Só isto já fará sua viagem valer a pena.
As cidades não se mostram de imediato
“O turismo entra pelos olhos.” A frase me foi dita pelo meu analista; uma tentativa de explicar a experiência agridoce do tour de um mês que fiz pela Europa. Sob vários aspectos, ele está certo: a absorção de um mundo novo acontece principalmente pelas retinas. A falta de visão, entretanto, me permite formar uma imagem própria dos cenários mais vistos e fotografados do mundo.
Embora já tivesse ido aos EUA, o passeio à Europa foi minha primeira viagem ao exterior para turistar. Seu caráter foi exacerbado porque, pela primeira vez, não pude levar minha cadela-guia, graças às restrições que o Reino Unido impõe à entrada de animais. Assim, segurei no braço de um amigo, que me guiou por Alemanha, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Inglaterra e Escócia.
Planejamos tudo (ou quase tudo): de hotéis e albergues a passagens de trem. Não foi o bastante. Diante da minha cegueira (e, portanto, da impossibilidade de que eu ajudasse na leitura de mapas ou na localização de estações de metrô), toda a responsabilidade por nossa locomoção recaía sobre meus companheiros. Quem já viajou sem guia turístico conhece o estresse potencial que é se virar em um país estrangeiro. Mais planejamento teria poupado aborrecimentos.
As cidades não se mostram de imediato para quem não enxerga. Não há fotos que resumam o lugar, ou imagens aéreas que permitam uma síntese geral. Sem ver, é preciso ir às ruas, aos parques, às pessoas. É preciso tocar, experimentar, ouvir, cheirar. A cidade se desnuda aos poucos, até que seja possível conhecer seu corpo com as mãos, narinas e ouvidos.
Nos museus, igrejas e castelos, os passeios beiravam o hilário. Todas as vezes em que ia aos balcões de informação descobrir o que era oferecido a visitantes com deficiência, sentia no ar uma questão engasgada na garganta do meu interlocutor: “O que esse cara está fazendo aqui, se não vai conseguir ver nada?”. Queria que a pergunta tivesse sido feita. Assim, teria explicado sobre a sensação de estar em frente à Pedra de Roseta, ou sobre o arrepio que percorreu meu corpo por estar diante do túmulo de Charles Darwin. Teria contado como é gratificante ver o esforço dos amigos em explicar com palavras o que eles apreendem com as retinas.
E, claro, há vantagens. Em muitas atrações, o visitante cego recebe permissão para fazer o que todos têm vontade, mas são proibidos: tocar nos objetos. Talvez o melhor momento tenha sido em uma destas ocasiões. Em Stonehenge (foto), o círculo pré-histórico de pedras gigantescas no sudoeste da Inglaterra, ouvi berros de indignação e senti os olhares invejosos de 200 turistas enquanto eu, sozinho, tocava em rochas de mais de 4 mil anos.
Em grande parte, ter uma deficiência física significa acreditar na solidariedade. Para mim, estar em um país estrangeiro, cujas regras desconhecia e onde a língua não era a minha, exacerbou a sensação de fragilidade. Daí a experiência agridoce: ao mesmo tempo em que vi minha independência – conquistada com dificuldade – escorrer entre os dedos, fui obrigado a confiar nos meus companheiros. Ao mesmo tempo em que me senti de volta à infância, passei a admirar o esforço dos outros para que aproveitasse a viagem tanto quanto eles. E isto é muito tocante.
Fonte: O Estado de S. Paulo (02/08/11)
Referência: Rede Saci
Estou fazendo uma pesquisa sobre o presidiário deficiente Visual e preciso contato com o Jornalista Lucas de Abreu Maia, se puderem me enviar o contato com ele eu agradeço a atenção.
Eduardo
Amei ler sua experiência , sou mãe de um cego total.Quanto a nova experiência vim da retina eu como mãe sempre pensei assim.Meu filho está cursando técnico de TI no Senac mas meu medo é conseguir emprego.Neste momento ele precisou de um lugar para fazer um trabalho apenas uma análise em um computador e qd viam que é cego descartavam a hipótese , está sem fazer o trabalho .
Meire Paiva