Fila no SUS: Por que ser PcD é esperar mais e receber menos?
Vivemos em um país onde a saúde, garantida como direito fundamental pela Constituição, parece, na prática, uma promessa vazia para milhões de brasileiros. O Sistema Único de Saúde (SUS), tão elogiado em congressos e seminários internacionais, convive com uma dura e cruel realidade: a demora no atendimento, mesmo em casos graves, tornou-se não apenas comum, mas estrutural e crônica. Essa constatação não vem apenas de dados técnicos ou estudos de instituições de saúde, mas do cotidiano de quem sofre esperando um leito, um medicamento, um exame, um socorro.
O frade dominicano Marcos Sassatell denunciou com firmeza: “Nesses casos, os crimes praticados pelo Poder Público são crimes de omissão de socorro. Ninguém, porém, é preso, julgado e condenado por causa desses crimes. Reina a total impunidade”. E de fato, parece que nos acostumamos com a desumanização.
Quando ser PcD é mais um fator de vulnerabilidade
No universo das pessoas com deficiência, a situação é ainda mais grave. Pessoas com deficiência física, auditiva, visual, intelectual ou múltipla enfrentam barreiras adicionais ao buscar atendimento no SUS. A fila no SUS, para elas, costuma ser ainda mais longa e injusta. Os relatos se acumulam: filas dobradas, negligência em relação a laudos especializados, dificuldades de acessibilidade nas unidades, despreparo de profissionais e, o mais cruel, o descaso com a vida.
Para quem depende do SUS para terapias como fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional e acompanhamento psicológico, a espera pode durar meses ou mesmo não acontecer nunca. Famílias de crianças com deficiência e síndromes como paralisia cerebral, TEA (transtorno do espectro autista) e síndrome de Down relatam uma verdadeira maratona de sofrimento na fila do SUS para conseguir um mínimo de atendimento.
E quando se trata de uma emergência? Uma crise convulsiva, uma complicação respiratória, um ferimento grave… O resultado costuma ser o mesmo: espera sem fim na fila do SUS, portas fechadas e uma família desesperada diante de um sistema omisso.
O discurso bonito e a prática que mata
O SUS é, em teoria, um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo. Na prática, é um sistema que abandona e condena à morte os pobres e, de forma ainda mais perversa, os que têm sua existência condicionada às políticas de acessibilidade: as pessoas com deficiência.
Frade Sassatell foi categórico: “Temos um SUS que, na prática (…) é criminoso e mata os pobres”. E quando ele diz “pobres”, não se refere apenas à extrema pobreza, mas à massa de trabalhadores e trabalhadoras que sobrevivem com salários indignos, sem condição de arcar com planos de saúde particulares.
O mito da falta de recursos
É comum ouvirmos dos governantes que faltam recursos, que a burocracia atrasa compras, que a demanda é muito alta. Mas como aponta o frade, tudo se resume a uma opção política. O dinheiro existe. Está nos cofres públicos, vindo dos nossos impostos. Dinheiro que deveria ser usado prioritariamente para salvar vidas, mas que escorre pelos ralos da corrupção e da ineficiência.
Enquanto isso, a fila no SUS segue crescendo — e várias pessoas com deficiência morrem por falta de atendimento, aguardando uma vaga em UTI ou a chegada de medicamentos básicos. O que está em jogo não é uma questão administrativa. É uma violência estrutural.
Terceirização: a nova face da privatização
O Poder Público, em vez de assumir sua responsabilidade, tem optado pela terceirização travestida de “eficiência”. As chamadas Organizações Sociais (OSs), empresas privadas que administram hospitais e postos de saúde, são o novo rosto da privatização disfarçada. A lógica do lucro contamina a área da saúde, e quem mais perde são os mais vulneráveis.
Pessoas com deficiência, por demandarem atendimentos múltiplos, especializados e muitas vezes de longo prazo, são vistas como custo alto. Resultado? São ignoradas, empurradas para o fim da fila, mal atendidas, quando não negligenciadas completamente.
O direito à vida é um privilégio?
A pergunta que ecoa é dura: o direito à vida virou privilégio? No Brasil de hoje, tudo indica que sim. Viver com deficiência e depender do SUS significa, em muitos casos, viver em risco constante. O direito à saúde, garantido pela Constituição, é constantemente violado.
Como lembra Sassatelli, “Se não houver vaga em UTI da rede de hospitais públicos ou conveniados, o Poder Público é legal e moralmente obrigado a pagar a internação em hospital particular e a adquirir os medicamentos necessários”. Isso é lei, não favor.
E os responsáveis?
Ninguém é responsabilizado. Nenhum gestor é preso, julgado ou punido pelos crimes de omissão de socorro. A impunidade alimenta o descaso. O silêncio legitima a violência institucional.
Diante disso, Sassatelli lança um apelo importante: que advogados e advogadas comprometidos com a justiça social se disponham a atuar de forma voluntária, defendendo famílias vitimadas por essa omissão criminosa. Processar o Estado é um passo necessário para que o direito não siga sendo apenas uma promessa no papel.
Por um SUS verdadeiramente inclusivo
A luta das pessoas com deficiência é por dignidade, por respeito e por um SUS que atenda a todos de forma igualitária. Isso significa mais que discursos bonitos: significa políticas reais, recursos efetivos, formação humanizada para profissionais de saúde e estrutura adequada.
Significa também que a sociedade civil, movimentos sociais, associações PcD e todos os cidadãos conscientes cobrem dos seus representantes responsabilidade e compromisso. Não se pode mais aceitar que pessoas morram por falta de atendimento ou tenham suas vidas reduzidas à espera de um laudo.
Conclusão
O texto do frade Marcos Sassatelli nos provoca, com razão, a enxergar a gravidade do que acontece diariamente no SUS. Quando isso se cruza com as histórias de pessoas com deficiência, o quadro é ainda mais cruel. E o que está em jogo não é apenas a saúde, mas o direito de existir plenamente.
É urgente que denunciemos, que mobilizemos, que nos organizemos para exigir um sistema de saúde público, digno, acessível e verdadeiramente inclusivo. Porque a vida de uma pessoa com deficiência não vale menos.