Herodes, esse incompreendido
Para uma criança em sofrimento, apresentar-lhe a morte como alternativa é um gesto de obscenidade
O jornalista Paulo Francis, que adorava crianças malcomportadas, costumava dizer que Herodes tinha sido um incompreendido. Pena que Francis não esteja entre nós para contemplar o que se passa na Bélgica. O espírito de Herodes está vivo por aquelas bandas e o país está a um passo de legalizar a eutanásia para crianças.
Verdade que a Bélgica sempre foi bastante “liberal” (peço desculpa pelo uso abusivo do termo) nessas matérias. Segundo os manuais da especialidade, a eutanásia (ativa ou passiva) existe para terminar com o sofrimento intolerável (e incurável) de um doente.
O médico pode matar o paciente (eutanásia ativa), ou, em alternativa, pode suspender certos tratamentos que terão o mesmo fim (eutanásia passiva).
Seja como for, havia pelo menos um entendimento mínimo de que a eutanásia era um expediente extremo, só aplicável a situações extremas.
Acontece que a Bélgica foi alargando os casos de “situações extremas”. Sim, um doente terminal com câncer cumpre os requisitos para uma injeção letal. Mas o que dizer de uma pessoa em profundo sofrimento psicológico ou acometida por uma deficiência irreversível como a cegueira?
Se o argumento da autonomia é o mais importante nas questões de vida ou morte, não devemos respeitar também a autonomia de alguém que não deseja mais viver porque habitar as trevas – psicológicas, sensoriais – não é destino que se deseje para ninguém?
Foi assim que a Bélgica começou a praticar estas formas de eutanásia “à la carte” muito para além dos casos clássicos de sofrimento irreversível. O passo seguinte – eutanásia para crianças – era apenas uma questão de tempo.
Posição pessoal: sou favorável a que os médicos façam tudo para minorar a dor (mesmo que esses cuidados paliativos tenham como “duplo efeito” a morte a prazo do paciente – por exemplo, com injeções crescentes de morfina).
E, além disso, admito situações de eutanásia passiva em que se retiram meios artificiais que apenas adiam artificialmente o fim de qualquer existência. Entre esses meios artificiais não estão, logicamente, o oxigênio, a água e a alimentação. Matar um ser humano por asfixia, sede ou fome não faz parte da minha cartilha.
Mas também não faz parte da minha cartilha os argumentos autônomos e utilitaristas que normalmente são avançados para defender a eutanásia ativa.
Sobre os argumentos utilitaristas – há certos meios (matar o paciente) que são legítimos para se atingir certos fins (evitar o sofrimento do paciente), convém não levarmos demasiado longe esse raciocínio de “meios e fins”. Caso contrário, também podemos defender, sem nenhuma contradição, que existem certos meios (matar quem defende matar pacientes) para se atingirem certos fins (salvar a vida dos pacientes).
Sobre os argumentos de autonomia individual, a questão não está em saber se a autonomia é um valor fundamental. Claro que é. A questão está antes em saber até que ponto alguém em sofrimento considerável continua a ser o melhor juiz em causa própria. Sobretudo quando existem alternativas terapêuticas para diminuir esse sofrimento.
E, claro, a questão agrava-se quando falamos de crianças. Na lei belga que o Parlamento se prepara para aprovar, a eutanásia poderá ser ministrada a crianças gravemente doentes desde que elas o desejem; desde que os pais o permitam; e desde que um especialista sancione essa escolha.
Cada uma dessas premissas já é um problema por si só. Não vou discutir o que significa para uma civilização alegadamente avançada conceder aos pais (e aos médicos) o direito de matar os filhos. O cenário comenta-se a si próprio.
Fico-me pelos filhos: respeitar a vontade de uma criança que deseja morrer não é apenas um problema legal, que lida com o fato de ela não ter atingido ainda a maioridade. É sobretudo uma forma de desistência moral: para uma criança em sofrimento, apresentar-lhe a morte como alternativa é um gesto de obscenidade que deveria envergonhar uma sociedade de adultos.
“Herodes, esse incompreendido”, dizia Paulo Francis, com perversa ironia. Mal ele imaginava que, na segunda década do século 21, Herodes deixaria de ser uma ironia.
Fonte: João Pereira Coutinho, Folha de São Paulo