Inclusão escolar – caminhos e descaminhos, desafios, perspectivas
Caro leitor,
O artigo abaixo foi escrito pela educadora Maria Teresa Eglér Mantoan*.
Caminhos
Os caminhos até então percorridos para que a escola brasileira acolha a todos os alunos, indistintamente, tem se chocado com o caráter eminentemente excludente, segregativo e conservador do nosso ensino, em todos os seus níveis: básico e superior.
A proposta revolucionária de incluir todos os alunos em uma única modalidade educacional, o ensino regular tem encontrado outras barreiras, entre as quais se destaca a cultura assistencialista/ terapêutica da Educação Especial.
É inegável que, por estarem pautadas para atender a um aluno idealizado e ensinando a partir de um projeto escolar elitista, meritocrático e homogeneizador, nossas escolas produzem quadros de exclusão que têm, injustamente, prejudicado a trajetória educacional de muitos estudantes.
A situação tem se arrastado pelo tempo e tem perpetuado desmandos e transgressões ao direito à educação e à não discriminação e grande parte das vezes por falta de um controle efetivo dos pais, das autoridades de ensino e da justiça em geral sobre os procedimentos das escolas para ensinar, promover e atender adequadamente a todos os alunos.
O sentido dúbio da Educação Especial, acentuado pela imprecisão dos textos legais, que fundamentam nossos planos e propostas educacionais, tem acrescentado à essa situação outros sérios problemas de exclusão, sustentados por um entendimento equivocado dessa modalidade de
ensino. Ainda é difícil distinguir a Educação Especial, tradicionalmente conhecida e praticada, da sua nova concepção, quando presente no ensino escolar e complementar à formação dos alunos com deficiência: o atendimento educacional especializado. No entanto, desde 1988, a Constituição
Federal já prescrevia esse atendimento, que é uma das garantias de inclusão escolar para os alunos com deficiência.
Por esses e outros sérios entraves, nossos caminhos educacionais estão se abrindo, a custa de muito esforço e da perseverança de alguns, diante da resistência de muitos. Estamos sempre travados por uma ou outra situação que impedem o desenvolvimento de iniciativas visando à adoção de
posições/medidas inovadoras para a escolarização de alunos com e sem deficiência, nas escolas comuns de ensino regular e nas que oferecem serviços educacionais especializados.
Não podemos, contudo, negar que o nosso tempo é o tempo das diferenças e que a globalização tem sido, mais do que uniformizadora, pluralizante, contestando as antigas identidades essencializadas.
Temos o direito de ser, sendo diferentes e, como nos afirma Pierucci (1999), se já reconhecemos que somos diferentes de fato, a novidade está em queremos ser também diferentes de direito.
Inclusão e diversidade
Direitos da Pessoa com Deficiência e Inclusão nas Escolas
A subjetivação do (d)eficiente no interior da escola: uma identidade a ser (des)construída
Descaminhos
No desejo de assegurar a homogeneidade das turmas escolares, destruíram-se muitas diferenças que consideramos valiosas e importantes, hoje, nas salas de aula e fora delas. De certo que as identidades naturalizadas dão estabilidade ao mundo social, mas a mistura, a hibridização,
a mestiçagem as desestabilizam, constituindo uma estratégia provocadora, questionadora e transgressora de toda e qualquer fixação da identidade. (Silva, 2000; Serres, 1993)
Ocorre que as identidades fixas, estáveis, acabadas, próprias do sujeito cartesiano unificado e racional estão em crise (Hall, 2000) e a idéia de identidades móveis, voláteis é capaz de desconstruir o sistema de significação excludente da escola atual, com suas medidas e mecanismos arbitrários de produção da identidade e da diferença.
Se o nosso objetivo é desconstruir esse sistema, temos, então, de assumir uma posição contrária à perspectiva da identidade “normal”, que justifica essa falsa uniformidade das turmas escolares. A diferença é, pois, o conceito que se impõe para que possamos defender a tese de uma escola para todos.
Embora haja problemas com a igualdade e diferença no sentido de se perceber de que lado nós estamos, quando defendemos uma ou outra (dado que essa bipolaridade tem nos levado a muitos paradoxos), ficamos com a firme intenção e propósito de privilegiar a diferença na perspectiva da
máxima proferida por Santos(1999): temos o direito à igualdade, quando a diferença nos inferioriza e direito à diferença, quando a igualdade nos descaracteriza!
Esta afirmação vem diretamente ao encontro do que a interpretação consentânea e inovadora de nossas leis oferece como fundamento da transformação das escolas comuns e especiais.
Temos o dever de oferecer escola comum a todos os alunos, pois a escola especial os inferioriza, discrimina, limita, exclui, mas também de garantir-lhes um atendimento educacional especializado paralelo, complementar, de preferência na escola comum, para que não sejam desconsideradas as especificidades de alguns aprendizes, quando apresentam alguma deficiência. A escola comum não pode ser substituída pelo ensino especial na oferta do ensino acadêmico, pois este é complementar à formação do aluno com deficiência e trata primordialmente das limitações que a deficiência lhes acarreta quando estudam em turmas do ensino regular.
Tanto a escola comum como a escola especial têm resistido às mudanças exigidas por uma abertura incondicional às diferenças. Uma das mais sérias e influentes razões para que essa situação se mantenha é a neutralização dos desafios que a inclusão impõe ao ensino comum e que mobilizam o professor a rever e a recriar suas práticas e a entender as novas possibilidades educativas trazidas pela escola para todas. Esses desafios estão sendo constantemente anuladas, contemporizadas por políticas educacionais, diretrizes, currículos, programas compensatórios (reforço, aceleração entre outros). Falsas saídas têm permitido às escolas comuns e especiais de escaparem pela tangente e de se livrarem do enfrentamento necessário com a organização pedagógica excludente e ultrapassada que as sustenta.
Mudanças que estão sendo implementadas em sistemas públicos e particulares de ensino visando à inclusão continuam, na maioria das vezes, entendendo a inclusão a partir de marcos teóricos que não conseguem superar os preceitos igualitaristas e universalistas da Modernidade. Esses marcos apregoam a disciplinarização, a padronização, a precaução contra a incoerência, a indeterminação, a indefinição e tudo o mais que possa desestabilizar as escolas, insistindo em manter a sua ânsia pelo lógico, pela negação das condições que produzem as diferenças. A orientação é incompatível com a inclusão escolar.
Temos dificuldade de incluir todos nas escolas, porque a multiplicidade incontrolável e infinita das suas diferenças inviabiliza o cálculo, a definição desses sujeitos e não se enquadra na cultura de igualdade das escolas. A diferença é difícil de ser recusada, de ser negada, desvalorizada e o especial da educação e o especial na educação que não conseguem assimilá-la, em um quadro interpretativo includente, reproduzem o igualitarismo essencialista, em que se a exclusão se perpetua. Há, então, que se mudar de quadro referencial e definir o ensino especial e regular com base no reconhecimento e valorização das diferenças, demolindo os pilares nos quais a escola tem se firmado até agora.
A igualdade abstrata não propiciou a garantia de relações justas nas escolas. A igualdade de oportunidades, que tem sido a marca das políticas igualitárias e democráticas no âmbito educacional, também não consegue resolver o problema das diferenças nas escolas, pois elas escapam ao que essa proposta propõe, diante das desigualdades naturais e sociais.
Em sua obra Teoria da Justiça, Rawls (2002) opõe-se às declarações de direito do mundo moderno, que igualaram os homens em seu instante de nascimento e estabeleceram o mérito e o esforço de cada um, como medida de acesso e uso de bens, recursos disponíveis e mobilidade social. Para este filósofo político, a liberdade civil com suas desigualdades sociais, e a igualdade de oportunidades com suas desigualdades naturais, são arbitrárias do ponto de vista moral; ele propôs uma política da diferença, estabelecendo a identificação das diferenças como uma nova medida da igualdade.
Ele se pronunciou a respeito, reafirmando:
[…] Assim, somos levados ao princípio da diferença, se desejamos montar o sistema social de modo que ninguém ganhe ou perca devido ao seu lugar arbitrário na distribuição de dotes naturais ou à sua posição inicial na sociedade sem dar ou receber benefícios compensatórios
em troca (p. 108).
Caminhando na mesma direção das propostas escolares inclusivas, o referido autor defende que a distribuição natural de talentos ou a posição social que cada indivíduo ocupa não são justas, nem injustas. O que as torna justas ou não são as maneiras pelas quais as instituições (no caso,
as educacionais) fazem uso delas. Ele sugere, então, uma igualdade democrática, que combina o princípio da igualdade de oportunidades com o princípio da diferença (idem, ibid. p.79).
A sugestão de Rawls tem opositores, por ser contra a noção de mérito. Para os que lutam por uma escola verdadeiramente inclusiva, na mesma linha argumentativa de Rawls (idem, ibid.), o merecimento não parece aplicar-se devidamente aos que já nascem em uma situação privilegiada
socialmente, aos que já tiveram a oportunidade de se desenvolver, a partir das melhores condições de vida e de aproveitamento de suas potencialidades; o mérito deve ser proporcional ao ponto de partida de cada um.
Ao combinar os dois princípios, Rawls (idem, ibid.) reconhece que as desigualdades naturais e sociais são imerecidas e precisam ser reparadas e compensadas, e o princípio da diferença é o que garante essa reparação, visando à igualdade. O autor ressalta ainda que a igualdade de oportunidades é perversa, quando garante o acesso, por exemplo, à escola comum, de pessoas com alguma deficiência de nascimento ou de pessoas que não têm a mesma possibilidade das demais de passar pelo processo educacional em toda a sua extensão, por problemas alheios aos
seus esforços. Mas não lhes assegura a permanência e o prosseguimento da escolaridade em todos os níveis de ensino.
Mais um motivo para se firmar a necessidade de repensar e de romper com o modelo educacional elitista de nossas escolas e de reconhecer a igualdade de aprender como ponto de partida, e as diferenças no aprendizado como processo e ponto de chegada.
Desafios
Inúmeras propostas educacionais, que defendem e recomendam a inclusão, continuam a diferenciar alunos pela deficiência, o que está previsto como desconsideração aos preceitos da Convenção da Guatemala, assimilada pela nossa Constituição/88, em 2001 e que deixa clara a
[…] impossibilidade de diferenciação com base na diferença, definindo a discriminação como toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência.[…] que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte de pessoas com deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais (art.I, nº 2, “a”).
De acordo com o princípio da não discriminação, trazido por essa Convenção, admitem-se as diferenciações com base na deficiência apenas com o propósito de permitir o acesso ao direito e não para se negar o exercício dele!
A Convenção precisa ser cumprida e é uma grande contribuição para todos os que pugnam por uma escola inclusiva e, especialmente, para os que defendem o ingresso de alunos com deficiência nas escolas comuns, pelo menos na faixa etária de 07 a 14 anos, quando o ensino escolar é obrigatório para todo e qualquer aluno, com e sem deficiência.
O encaminhamento direto de alunos com deficiência de escolas comuns para escolas especiais ou a matrícula exclusiva desses alunos em escolas especiais, tem sido entendida por alguns como uma diferenciação para incluir.Mas é possível incluir na exclusão dos ambientes escolares especiais?
Vale ainda, para melhor entender essa intrincada situação, o que a referida Convenção define como discriminação: […] toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência […]. No caso de um ambiente escolar segregado, a discriminação é patente e, em conseqüência, deveria já ter sido banida.
Não se trata de uma caça às bruxas e de se exigir um comportamento “politicamente correto” extremista, quando se defende a escola comum como o lugar de todos os alunos. A intenção é a de se assegurar a todo o cidadão brasileiro o direito à não discriminação, em toda e qualquer
circunstância.
Os pais de crianças com deficiência e os educadores brasileiros deveriam ser os primeiros a levantar a bandeira contra a discriminação e, no entanto, o que muitos ainda insistem em fazer é batalhar para que a exclusão se mantenha e as escolas especiais sejam consideradas escolas de ensino fundamental.
Chegam até a propor que se faça a “inclusão às avessas”, admitindo que crianças sem deficiência (felizmente, a maioria desse segmento populacional) estudem em ambientes escolares para pessoas com deficiência (a maioria, nesses ambientes educacionais especializados!). Os ambientes especializados, travestidos de escolas comuns, jamais serão inclusivos e compatíveis com o papel social e educacional das escolas comuns – lugar de preparação das gerações mais novas para fazer a passagem do meio familiar, para o público, espaço social em que se encontram, indistintamente, alunos/pessoas, as/os mais diferentes, com e sem deficiências. E ainda cabe perguntar: de que
inclusão educacional nós estamos falando, quando retiramos uma pessoa de seu lar ou de uma escola comum para inseri-la em um ambiente educacional à parte?
Com tudo isso há ainda os que insistem em defender essa versão equivocada de inclusão como legítima e verdadeira. Que motivos alimentam a dificuldade de se desobstruírem os caminhos que nos levam à uma escola para todos, como aqui nos referimos? O que tem impedido o processo de construção de uma escola inclusiva, que, em função do ensino que ministra, não discrimina, nem mesmo quando diferencia pela deficiência, ao oferecer um atendimento especializado complementar para os que dele necessitam?
Estamos vivendo um momento de tomada de decisão, em que não adianta mais “tapar o sol com a peneira”.O próprio tempo, de tão longo, já foi suficiente para que se entendesse o que é proposto como uma escola para todos. Se ainda não conseguimos avançar na sua direção, é porque, certamente, pesam muito essas contendas e esses desencontros entre os que se dispõem a progredir, a revirar as escolas comuns e especiais do avesso e os que querem conservá-las como estão, para garantir outros benefícios, para impedir avanços, para barrar o novo.
O desafio maior que temos hoje é convencer os pais, especialmente os que têm filhos excluídos das escolas comuns, de que precisam fazer cumprir o que nosso ordenamento jurídico prescreve quando se trata do direito à educação. Os professores deveriam ser os guardiões desse direito e
apoiar os pais nas suas dificuldades de compreendê-lo e de exigi-lo a todo custo.
Há ainda a considerar a resistência das organizações sociais às mudanças e às inovações que, pela rotina e a burocracia nelas instaladas, enrijecem suas estruturas, arraigadas às tradições e à gestão de seus serviços. Tais serviços, no geral, e para atender às características desse tipo de organização, fragmentam e distanciam, categorizam e hierarquizam os seus assistidos, como constatamos freqüentemente, nas escolas comuns e especiais e nas instituições dedicadas ao atendimento exclusivo de pessoas com deficiência. Por outro lado, há que se admitir que as
instituições têm seus fins próprios e nem sempre um novo propósito, como é o caso da inclusão, encaixa-se no foco de seus interesses imediatos.
Temos outros entraves a enfrentar, como aqueles que provém, como já referimos, da neutralização dos desafios à inclusão. Medidas que propiciam o aparecimento de pseudo-soluções para atender aos princípios escolares inclusivos são evidentes no impasse integração X inclusão – uma das intermináveis cenas do debate da inserção de alunos com deficiência nas escolas comuns.
Apesar dos avanços na conceituação e na legislação pertinente, vigoram ainda três possíveis encaminhamentos escolares para alunos com deficiência: a) os dirigidos unicamente ao ensino especial; b) os que implicam uma inserção parcial, ou melhor, a integração de alunos em salas
de aula de escolas comuns, mas na condição de estarem preparados e aptos a freqüentá-las e c) os que determinam a inclusão total e incondicional de todos os alunos com deficiência no ensino regular, provocando a transformação das escolas para atender às suas diferenças e as dos
demais colegas, sem deficiência. A coexistência de situações intermediárias de inserção com as que têm, verdadeiramente, o propósito de incluir todos os alunos, cria dificuldades e mantém o uso das medidas paliativas de inserção que se arrastam, desde os anos 90, alimentando infindáveis
polêmicas.
O convívio com as pessoas com deficiência nas escolas e fora delas é recente e gera ainda certos receios. O preconceito justifica as práticas de distanciamento dessas pessoas, devido às suas características pessoais (como também ocorre com outras minorias), que passam a ser o alvo de
nosso descrédito; essas pessoas têm reduzidas as oportunidades de se fazerem conhecer e as possibilidades de conviverem com seus colegas de turma, sem deficiência.
Os territórios corporativos constituem um outro alvo desafiante para a inclusão, especialmente quando se trata dos profissionais ligados à Educação Especial. Eles lutam por conservar seus privilégios, identidades corporativas e o reconhecimento social, que adquiriram em todos esses
anos. Não admitem que sua formação se descaracterize e que suas práticas sejam abaladas pela inclusão, temendo perder seus espaços, duramente conquistados, de uma hora para outra.
Com isso ficam “cegos” diante do que a inclusão lhes propiciaria, se conseguissem admitir o caráter complementar conferido à Educação Especial, pela nossa Constituição, quando propõe o atendimento educacional especializado em todos os níveis de ensino (do básico ao superior) para a eliminação das barreiras que com que as pessoas com deficiência se defrontam ao se relacionarem com o meio externo.
Grande parte dos professores das escolas comuns acredita que o ensino escolar individualizado e adaptado é o mais adequado para atender, em suas necessidades escolares, aos que têm dificuldades de aprender e aos alunos com deficiência, principalmente quando se trata de educandos com deficiência mental. Os professores especializados, por sua vez, consideram o ensino escolar especializado ideal para os alunos com deficiência e que só alguns casos (os menos problemáticos), poderiam freqüentar as salas de aula de ensino regular, nas escolas comuns.
Adaptar o ensino para alguns alunos de uma turma de escola comum não conduz e não condiz com a transformação pedagógica dessas escolas, exigida pela inclusão. A inclusão implica em uma mudança de paradigma educacional, que gera uma reorganização das práticas escolares: planejamentos, formação de turmas, currículo, avaliação, gestão do processo educativo.
Especializar o ensino escolar para alguns, em ambientes escolares à parte, não é compatível com o que se espera da escola, como já nos referimos inicialmente, pois nesses espaços não conseguimos preparar cidadãos aptos a enfrentar o dia-a-dia, tal como se apresenta para todos. O ensino assim concebido baseia-se em propósitos e procedimentos que decidem “o que falta” ao aluno e a sua adaptação a essa “falta” funciona como um processo regulador externo da aprendizagem. Na perspectiva da inclusão escolar, a adaptação tem sentido oposto e é testemunho de emancipação
intelectual e conseqüência de um processo de auto-regulação da aprendizagem, em que o aluno assimila o novo conhecimento, de acordo com suas possibilidades de incorpora-lo ao que já conhece.
Joseph Jacotot traz um olhar original sobre a igualdade, que se emaranha nas questões de direito, de política, de promessas constitucionais. Para esse professor de idéias extravagantes para a sua época e para a atualidade, a igualdade não seria alcançada a partir da desigualdade, como se espera atingi-la, até hoje, nas escolas; acreditava em uma outra igualdade, a igualdade de inteligências. Este é mais um desafio para que possamos entender a extensão dos propósitos inclusivos, na educação comum e especial.
Ao defender ardorosamente o ser humano como ser cognoscente, capaz de aprender, de conhecer, e defendia essa capacidade de toda submissão – uma inteligência não pode submeter uma outra. Em uma palavra, a emancipação da inteligência proviria dessa igualdade de capacidade de aprender, que vem antes de tudo, que é ponto de partida para qualquer tipo ou nível de aprendizagem e não o seu resultado!!!.
O professor comum e especializado, portanto, não deveria negar essa capacidade, esse “lugar do saber” que é anterior a qualquer aprendizagem e que cada aluno tem de ocupar no seu percurso educacional. Não reconhecer a emancipação intelectual dentro dessa perspectiva revolucionária, é
ferir o princípio de igualdade intelectual e, portanto, embrutece esse aluno com um ensino explicativo e limitador, que o assujeita à verdade do mestre, sem contestações.
Rancière (2002) relembra os ensinamentos de Jacotot, quando refere: Há desigualdade nas manifestações da inteligência, segundo a energia mais ou menos grande que a vontade comunica à inteligência para descobrir e combinar relações novas, mas não há hierarquia de capacidade
intelectual. (p.49)
As grandes lições deste mestre são mais um argumento em favor da necessidade de combinar igualdade com as diferenças e de nos distanciarmos dos que se apegam unicamente à cultura da igualdade de oportunidades liberal e do mérito para defender a escola do seu caráter excludente,
que bane os que por desigualdades significativas de nascimento e/ou desigualdades sociais não conseguem preencher os requisitos de um padrão de aluno previamente estipulado.
A escola insiste em afirmar que os alunos são diferentes quando se matriculam em uma série escolar, mas o objetivo escolar, no final desse período letivo, é que eles se igualem em conhecimentos a um padrão que é estabelecido para aquela série, caso contrário serão excluídos por repetência ou passarão a freqüentar os grupos de reforço e de aceleração da aprendizagem e outros programas embrutecedores da inteligência.
A indiferença às diferenças está acabando, passando da moda. Nada mais desfocado da realidade atual do que ignorá-las e isola-las em categorias genéricas, típicas da necessidade moderna de agrupar os iguais, de organizar pela abstração de uma característica qualquer, inventada, e atribuída
de fora.
Os alunos jamais deverão ser desvalorizados e inferiorizados pelas suas diferenças, seja nas escolas comuns, como nas especiais. Esses espaços educacionais não podem continuar sendo lugares da discriminação, do esquecimento, que é o ponto final dos que seguem a rota da proposta da eliminação das ambivalências com que as diferenças afrontam a Modernidade.
Perspectivas
Sabemos da necessidade e da urgência de se enfrentar o desafio da inclusão escolar e de colocar em ação os meios pelos quais ela verdadeiramente se concretiza. Por isso, temos de recuperar o tempo perdido, arregaçar as mangas e promover uma reforma estrutural e organizacional de nossas
escolas comuns e especiais. Ao conservadorismo dessas instituições precisamos responder com novas propostas, que demonstram nossa capacidade de nos mobilizar para pôr fim ao protecionismo, ao paternalismo e a todos os argumentos que pretendem justificar a nossa incapacidade de fazer jus ao que todo e qualquer aluno merece: uma escola capaz de oferecer-lhe condições de aprender, na convivência com as diferenças e que valoriza o que consegue entender do mundo e de si mesmo.
As práticas escolares inclusivas reconduzem os alunos “diferentes”, entre os quais os que têm uma deficiência, ao lugar do saber, de que foram excluídos, na escola ou fora dela.
A condição primeira para que a inclusão deixe de ser uma ameaça ao que hoje a escola defende e adota habitualmente como prática pedagógica é abandonar tudo o que a leva a tolerar as pessoas com deficiência, nas turmas comuns, por meio de arranjos criados para manter as aparências de
“bem intencionada”, sempre atribuindo a esses alunos o fracasso, a incapacidade de acompanhar o ensino comum. Para reverter este sentimento de superioridade em relação ao outro, especialmente quando se trata de alunos com deficiência, a escola terá de enfrentar a si mesma, reconhecendo o modo como produz as diferenças nas salas de aula: agrupando-as por categorias ou considerando cada aluno o resultado da multiplicação infinita das manifestações da natureza humana e, portanto, sem condições de ser encaixado em nenhuma classificação artificialmente atribuída, como prescreve a inclusão.
Em síntese, a inclusão escolar é um forte chamamento para que sejam revistas as direções que em que estamos alinhando nosso leme, na condução de nossos papéis como cidadãos, educadores, pais. Precisamos sair das tempestades, destes tempos conturbados, perigosos e a grande virada
é decisiva.
Muito já tem sido feito no sentido de um convencimento das vantagens da inclusão escolar para todo e qualquer aluno. Embora não pareçam, as perspectivas são animadoras, pois as experiências inclusivas vigentes têm resistido às críticas, ao pessimismo, ao conservadorismo, às resistências de muitos. A “Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva inclusiva” representa um avanço para que essas perspectivas se reafirmem. A verdade é implacável e o tempo e a palha estão amadurecendo as ameixas.
* Maria Teresa Egler Mantoan é pedagoga especializada em educação de pessoas com deficiência mental pelo Centre National D’Etudes et Formation pour L’Adapatation Scolaire et L’Educacion Specialisée (Cnefases) em Beaumont-sur-Oise, na França, em 1976.
Doutora em Psicologia Educacional pela Faculdade de Educação da UNICAMP/SP e professora do Departamento de Metodologia de Ensino dessa universidade, onde a professora Maria Teresa Mantoan coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Reabilitação de Pessoas com Deficiência (Leped) da Faculdade de Educação. É professora convidada no Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied).
Sua contribuição é expressiva na área de pesquisa educacional e nas atividades de extensão da UNICAMP, tendo promovido inúmeros cursos de formação continuada para professores das redes públicas de ensino.
Referências bibliográficas
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