Educação Inclusiva

Mitos e preconceitos em torno do aluno com deficiência na escola regular e na escola especial – Parte 1

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Inclusão EscolarCaro leitor, o artigo abaixo, foi escrito pelo Dr. Francisco J. Lima da  Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Centro de Estudos Inclusivos (CEI/UFPE). Como o texto é longo ele foi dividido em duas partes. Acompanhe hoje a primeira parte desse reflexivo texto.

“… Continuar com a passividade perante os que alegam, com seus discursos distorcidos, que “a inclusão tem de ser feita com vagar; com prudência; sem leviandade…” é sermos cúmplices da exclusão de centenas de milhares de pessoas, por conta de sua deficiência e coniventes com a exclusão de um sem número de outras pessoas, crianças, jovens e adultos que sequer aparecem nesta sociedade, defendida pelos que dessa forma discursam.”

Mitos e Pré-conceitos em Torno do Aluno com Deficiência na Escola Regular e na Escola Especial

1- O preconceito para com os alunos com deficiência e a resistência em educá-los é atual e internacional.

2- Não há inclusão se não houver transformação e não há inclusão plena se a transformação não for contínua, consciente e concreta.

3- A inclusão não é uma mera teoria da moda, mas uma atitude de vida; uma expressão de sociedade e cidadania; uma compreensão de que todos os seres humanos são humanos e como tais devem ser tratados e respeitados; enfim, é um caminho para o sempre, para o infinito, para o eterno transformar do aqui e agora.

 Introdução

Ao iniciarmos nossa apresentação, gostaríamos de oferecer algumas das fundações sobre as quais estaremos construindo nossas reflexões.

Assim, tomemos como primeira fonte de sustentação para nossa fala o significado de direitos humanos e pessoas humanas.

Aqui entenderemos direitos humanos, no seu sentido mais amplo, no sentido daquilo que cada um, ao olhar para dentro de si, sente como sendo o direito do conjunto de todas as pessoas, isto é, da humanidade: o direito à vida (o direito de ter e manter a vida); o direito à saúde (alcançar, ter e manter a saúde mental, física e psicológica); o direito ao trabalho (ter um emprego, preservar as condições de o manter, ser pago dignamente pelo trabalho feito); o direito à educação (ter acesso à escola e à educação com qualidade, ter condições de igualdade na aprendizagem, ter respeitado seu tempo e modo de adquirir e manifestar conhecimento e ser reconhecido no seu conhecimento manifesto ou adquirido); o direito ao lazer (ter acesso digno, respeitoso e com freqüência ao lazer e aos locais de lazer, sem restrições ou tutelas de outrem).

A pseudo-redundância da expressão “pessoa humana” se faz necessária, visto que nem todas as pessoas, no modelo social em que vivemos, são tratadas como humanos. Pelo contrário, há bem mais pessoas sendo tratadas como algo menos que animal que como humanos dotados dos direitos anteriormente mencionados.

Referimo-nos aos muitos alunos com deficiência, a quem é negado o direito à educação por diretores, coordenadores de curso, donos de escolas, professores, tutores legais, pais etc., por acharem que são eles que devem decidir a respeito da vida das pessoas com deficiência. E fazem isso, sob o argumento pueril de que “será melhor para o aluno com deficiência.”!

Referimo-nos como “pessoas humanas” àquelas muitas pessoas com deficiência a quem é negado o direito à saúde porque orientações religiosas, arcaicas e torpes, (fora do e infiltradas no meio científico) coíbem, dificultam impedem avanços científicos capazes de evitar, curar e impedir o agravamento de doenças e de outros quadros graves à saúde humana.

Referimo-nos como “pessoas humanas” àqueles muitos trabalhadores que, por conta de uma deficiência são “retirados” de seus empregos porque donos de empresas, médicos do trabalho e outros personagens de RH pensam que uma pessoa com deficiência perde sua eficiência quando perde um de seus sentidos ou uma parte de seu corpo, ou porque teve ou tem uma doença mental, ou ainda, porque tem uma deficiência mental.

Referimo-nos como “pessoas humanas” àquelas muitas pessoas a quem o direito ao lazer é denegado por donos de área de lazer, para quem seus parques aquáticos, seus “playcenters” etc. não estão preparados para “receber” pessoas com deficiência; referimo-nos como “pessoas humanas”, àquelas muitas pessoas com deficiência a quem os hotéis, centro de convenções, restaurantes, teatros, cinemas, órgãos de gerência municipal, estadual ou federal desrespeitam, negam, passam por cima do direito dessas pessoas de ir e vir para o trabalho, para escola para os estabelecimentos de saúde e de lazer, porque não tornam seus espaços físicos, acessíveis.

Referimo-nos como “pessoas humanas” aquelas muitas pessoas com deficiência a quem médicos e demais profissionais da saúde, da educação, da justiça, dos poderes legislativos e executivos maltratam, destratam, ou tratam mal, porque simplesmente desconsideram essas pessoas como sendo dignas de respeito, visto que, para eles, essas pessoas são “deficientes”, “menos válidos”, “menos gente”, portanto não merecendo que lhes sejam prestados cuidados em sua língua de comunicação social (Libras, por exemplo); em seu código de escrita acessível (em Braille, por exemplo) ou numa comunicação em linguagem acessível, como se deve usar em situações de atendimento médico, jurídico, educacional e outros (com pessoas com deficiência mental, com síndromes e com dificuldade de comunicação ou cognição).

Enfim, pessoas humanas são todas as pessoas, inclusive aquelas que no modelo social atual, estão fora.

Outro ponto de sustentação de nossa fala é o conceito de inclusão, o qual exige que a sociedade se transforme para respeitar, acolher e atender às necessidades de todos os seus membros, num contínuo fazendo. Sob a égide da inclusão, os limites de uma pessoa com deficiência estão na sociedade e não na deficiência do indivíduo.

Ao se entender isso, verifica-se que um aluno com deficiência pode não aprender, não por sua incapacidade de aprender, mas pela incapacidade de a escola o ensinar, respeitando o direito ao modo e tempo de aprendizagem individual do aluno.

Ao se reconhecer que está na sociedade o limite de uma pessoa com deficiência e não na sua própria deficiência, constata-se que um aluno “cadeirante”, por exemplo, só estará “incapacitado” de estudar comunicação se não houver acesso físico à sua sala de aula, ou aos locais de que necessite complementar seus estudos, como nas próprias salas de cinema.

Semelhantemente, no trabalho, uma pessoa surda só será “incapacitada” para trabalhar como locutora de rádio, se a ela não for dada a oportunidade de aprender a língua oral do grupo social em que está inserida e do qual faz parte. Se, pelo contrário, a ela for dada a oportunidade de ser falante da língua oral de comunicação de sua sociedade, então ela poderá ser locutora de rádio, como outro profissional qualquer.

Como se pode notar, a Inclusão é um transformar-se, e assim o sendo, significa pôr termo ao atual modelo social, o qual é excludente e que teve origem nos primórdios da raça humana, quando o homem pouco se diferenciava dos bichos.

Ocorre que os animais evoluíram, porém, muitas pessoas não acompanharam, sequer essa evolução, estando muito aquém dos animais, embora freqüentemente ofendam estes.

Sei que estas são palavras duras, porém, precisamos deixar de ser “diplomatas”, “políticos” ou “cautelosos” com o desrespeito aos direitos dos outros. Já é mais do que tarde para que deixemos de ser atores passivos dessa sociedade de exclusão que marginaliza pessoas que só querem (e devem) ter respeitado o seu direito de serem pessoas humanas.

Continuar com a passividade perante os que alegam, com seus discursos distorcidos, que “a inclusão tem de ser feita com vagar; com prudência; sem leviandade…” é sermos cúmplices da exclusão de centenas de milhares de pessoas, por conta de sua deficiência e coniventes com a exclusão de um sem número de outras pessoas, crianças, jovens e adultos que sequer aparecem nesta sociedade, defendida pelos que dessa forma discursam.

Faz parte, ainda, do discurso dos pretensos defensores da Inclusão, que eles chamam de “inclusão responsável”, dizer que “não basta jogar uma criança na escola e depois deixá-la lá”, ou ainda, “que se deve preparar a escola primeiro, porque se a escola já não atende os alunos normais, que dirá a essas pessoas!” Dizem isso sem terem coragem de nomear os alunos com deficiência: “quem dirá a essas pessoas…” alardeiam, enquanto negam-lhe o direito à educação.

Quando se promove a Inclusão, não se “joga” uma criança na sala de aula, nem a deixa sob a custódia de um estagiário ou babá. Quando se promove a Inclusão, ensina-se a todos os alunos sem distinção!

Como vimos anteriormente, portanto, a Inclusão pressupõe o respeito ao direito à educação com qualidade, pressupõe o respeito ao modo e tempo de aprendizagem do aluno, pressupõe dar condições de igualdade de acesso ao conhecimento etc., logo, qualquer dessas falas são despropositadas e nada têm que ver com Inclusão.

Também não cabe à Inclusão, a crítica que esta vem da imposição do governo; que vem de cima para baixo, à força, à goela abaixo etc.

Novamente, o discurso é destorcido, visto que é sabido que a inclusão é um movimento dos diversos grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade, que, ao longo dos séculos sempre lutaram para ser reconhecidas como pessoas humanas e que, no presente, vêm logrando êxito.

Com efeito, o estudo das diversas declarações de direitos, bem como das cartas, nacionais e internacionais, sobre a pessoa com deficiência não deixam dúvidas que os governos respondem apenas minimamente aos anseios dos grupos vulneráveis, dentre os quais os das pessoas com deficiência.

Portanto, falar de Inclusão é oferecer educação de qualidade a todos os alunos, inclusive aos com deficiência; é responder às necessidades de todos os alunos, à medida que elas aparecem, juntamente com o aluno, sua família e os demais agentes do ato educativo. Isto é, com todos os personagens do entorno do aluno, incluindo demais alunos, pessoal de apoio das escolas, amiguinhos, namorada ou namorado. Todos!

Tomemos agora o terceiro pilar de sustentação de nossas reflexões. De fato, o mais importante deles, já que é no reconhecimento deste pilar que os demais se solidificarão.

Estamos falando da crença inconteste, incondicional, plena e irrestrita à condição de ser humano da pessoa com deficiência; estamos falando da crença inconteste, incondicional, plena e irrestrita no potencial da pessoa com deficiência e estamos falando da crença inconteste, incondicional plena e irrestrita à capacidade de a pessoa com deficiência aprender.

Será apenas quando assumirmos que crianças, jovens e adultos com deficiência têm tanto para nos ensinar, quanto temos para ensiná-los; só quando olharmos para nossos alunos com deficiência como potenciais “ajudantes” nossos no processo educativo de todos os alunos; só quando aceitarmos que as pessoas com deficiência não são deficientes e podem mesmo nos superar em várias habilidades; só quando ensinar for nosso objetivo último na educação; só quando o alcançar quantitativo de resultados deixar de ser nosso objetivo tácito e valorizado na educação; só quando entendermos que a educação se faz trabalhando com o outro e não para o outro, ou pelo outro; só quando cooperar for a palavra de ordem, em lugar do competir é que estaremos vivenciando, manifestando, praticando a crença inconteste, incondicional, plena e irrestrita no potencial, na capacidade, na inteligência, enfim, na totalidade indivisível da pessoa com deficiência. Só então, estaremos deixando de ver a deficiência da pessoa, para ver a pessoa com deficiência.

Até que estejamos firmes sobre esse pilar, de alguma forma os demais não estarão firmes. E, estar firmes no pilar da crença no potencial e na capacidade da pessoa humana é estar em constante transformação para reconhecermos no outro, aquilo que nem sempre está aparente, mas que está lá, pronto para se nos mostrar, se quisermos ver.

O preconceito para com os alunos com deficiência e a resistência em educá-los é atual e internacional.

Gostaria, agora, de levá-los a pensar quando e onde começou o preconceito para com a pessoa com deficiência. Também, gostaria que pensassem se, nos dias de hoje, abril de 2005, o preconceito em relação à pessoa com deficiência acabou, se ainda existe e se é igual ou diferente ao existente no passado.

É plausível que o preconceito em relação à pessoa com deficiência tenha começado há muitos milhares de anos. Talvez, com a própria humanidade.

Relatos históricos dão conta de que os espartanos jogavam os bebês com deficiência do alto da montanha, visto que não acreditavam que uma pessoa com deficiência poderia servir aos propósitos da sociedade de então.

Na Idade Média e até mais recentemente, os religiosos cristãos enclausuravam as pessoas com deficiência, sob o manto de os protegerem, mas tal fato servia também para retirarem da vista da sociedade, o que ela não queria ver à sua frente ou em seu meio. Isso sem contar aquelas que, tendo deficiência mental ou doença mental, eram sacrificadas, queimadas, sob a alegação de que eram possuídas pelo demônio.

Atualmente, verifica-se, mesmo em programas televisivos e outros, atuações de religiosos no exorcismo de demônios de pessoas supostamente possuídas, mas que pelos relatos dos que estão com elas, tais pessoas, ou apresentam doenças mentais, ou mesmo deficiências mentais.

Situações como essas fazem perdurar o preconceito para com as pessoas com deficiência, mormente as com deficiência mental ou síndromes.

Em muitos países da Europa e também nos Estados Unidos, ou aqui no Brasil, vê-se resquício do preconceito historicamente construído e propagandeado pela Bíblia e outros livros de grande penetração no imaginário social.

Exemplo disso é a crença de que os cegos são seres puros, dignos de pena, possuidores de dons sobrenaturais etc; que os surdos são pecadores, que, por não comunicarem pela língua oral, são uma “estirpe” de humanos diferentes etc.; que os deficientes mentais são possuídos pelo demônio; não são capazes de manifestar seus sentimentos, que são agressivos, que não “fazem parte deste mundo”, embora estejam fisicamente aqui, entre outros absurdos do senso comum, por vezes corroborados por chamados “especialistas”, como veremos mais à frente.

É fato, pois, que se analisarmos nossa literatura, nossas expressões idiomáticas, nossas manifestações culturais, religiosas etc., constataremos o tanto de idéias preconceituosas que aprendemos como sendo verdade a respeito das pessoas com deficiência. E isso não só é atual, como também é internacional. Ocorre agora, aqui, bem como em toda parte, em todos os lugares.

No entanto, em muitos países, se têm trabalhado para, cada vez mais, transformar essa situação de preconceito, tornando a sociedade mais baseada no reconhecimento de que todos somos diferentes e não de que todos somos iguais.

Com efeito, a única igualdade entre nós, ou o que nos torna a todos iguais, é o próprio fato de sermos diferentes. E esse é um dos pressupostos da Inclusão.

Veja a última parte desse texto.

Fonte: http://www.mp.pe.gov.br/

Veja:

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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