O mundo da música na ponta dos dedos
Fabiana Bonilha é um grande exemplo de superação! Ela não permitiu que sua deficiência fosse um obstáculo para conquistar seu doutorado. Parabéns, Fabiana!
Cega congênita conquista, com louvor, doutorado na Unicamp
A plateia até podia ser considerada cheia se for levado em consideração que aquela era uma defesa de uma tese de doutorado, evento que quase sempre não atrai muita gente. Alguém do público, em certa altura, sussurou à pessoa que estava ao lado: “A Fabiana traz o mundo na ponta dos dedos” . Mas o melhor era dizer que ali, Fabiana trazia a música nas mãos, como que se a melodia primeiro pudesse ser sentida pelo tato. Na quarta-feira passada, a psicóloga e musicista Fabiana Bonilha se tornou a primeira cega congênita a defender uma tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). (grifo meu)
Fabiana tem 31 anos e, desde 2006, trabalha no Laboratório de Acessibilidade da Unicamp desenvolvendo a pesquisa que culminou na tese Do Toque ao Som: Ensino da Musicografia Braille Como um Caminho para a Educação Musical Inclusiva, em que ela estuda como três pessoas conseguiram aprender tocar instrumentos utilizando partituras musicais traduzidas para o código braile, sistema de pontos em relevo utilizado para a leitura por quem não enxerga.
Além dos resultados acadêmicos, a pesquisa trouxe contribuição para as pessoas com deficiência: durante seus estudos, a própria Fabiana, que toca piano desde os 7 anos, realizou a transcrição de cerca de 50 músicas, a maioria brasileiras, para o sistema braile, que agora estão disponíveis para consulta no Laboratório de Acessibilidade da Unicamp, na Biblioteca Central César Lattes.
Ao escolher o tema para a tese, Fabiana tinha em mente a produção de sua dissertação de mestrado, também em música, em que ela entrevistou estudantes de música cegos, que relataram suas dificuldades. No doutorado, a ideia foi acompanhar cada etapa dessa aprendizagem, de modo a demonstrar as variantes que influenciam na aprendizagem.
As dificuldades no processo já começam na transcrição das partituras, uma vez que a escrita braile adaptada à música, apesar de ter sido criada junto com todo o código de leitura usado pelos cegos, é pouco difundida e conhecida. “O próprio Louis Braille era músico e ele mesmo adaptou seu sistema para as partituras” , conta Fabiana, que também gosta de cantar. Aos domingos, ela chega a emocionar os fiéis que vão à missa na Paróquia Divino Salvador, no Cambuí, onde vez ou outra, interpreta o salmo da celebração.
Além da necessidade de um tradutor, que pode enxergar ou não, aprender um instrumento sem enxergar exige dedicação, muita coordenação motora e um bom nível de abstração. Os símbolos musicais, quando impressos em tinta, são grafados em cinco linhas, o chamado pentagrama. No caso do piano, em cada grupo de linhas, são indicadas as notas tocadas por uma das mãos. Uma partitura em braile, no entanto, tem todos os caracteres em sequência. Isso faz com que Fabiana, antes de ir para o piano, leia as duas linhas separadamente, as memorize e, depois, já no instrumento, as execute simultaneamente. “Isso exige um grau de abstração muito maior e uma sólida formação musical, inclusive teórica, além de muito treino de memória” , diz.
Inclusão
Toda a biografia da agora doutora foi marcada por iniciativas de inclusão. Sua primeira professora de piano, ela conta, não conhecia o sistema braile, mas para não deixar sua aluna frustrada, começou a representar o sistema de notas musicais em relevo. Só depois de algum tempo e muita pesquisa é que a professora descobriu, aprendeu o sistema e o transmitiu a Fabiana.
Na escola, o processo foi semelhante: a mãe, Vera, passava as férias escolares traduzindo para o braile os livros que, durante o ano, a filha iria usar. “Foi assim até a faculdade” , recorda-se. Hoje, a internet e os programas que transformam os textos na tela em voz facilitam o acesso às informações. “Tudo pode ser digitalizado e depois ouvido” , explica.
Para desenvolver a pesquisa, Fabiana acompanhou o processo de aprendizagem de dois alunos cegos e um professor de música que enxerga, mas que desejava aprender o sistema para repassá-lo a seus alunos. “Nesse processo, é muito importante para quem está aprendendo a música que haja um professor especialmente preparado, um aluno consciente e um tradutor especialista no sistema braile, que possa fornecer material de qualidade” , afirma.
O trabalho completo poderá ser consultado, em cerca de 60 dias, na biblioteca da Unicamp. “O som é muito importante para qualquer pessoa com deficiência. Acredito que o meu trabalho pode ajudar as pessoas a se apoderarem melhor disso tudo que é uma das formas que nós, cegos, temos para estabelecer contato com o mundo” , ressalta.
audiodocumentário
Articulista do E-Braille, canal no Cosmo On Line, do Grupo RAC, voltado para pessoas com deficiência visual, Fabiana também quis deixar o material que produziu acessível a mais pessoas e, para facilitar a divulgação, produziu um audiodocumentário de dez minutos com depoimentos de alunos e professores de música. O programa pode ser ouvido em http://www.cosmo.com.br/, clicando no link “E-Braille” .
O orientador da tese, Claudiney Carrasco, considera que o trabalho de Fabiana é relevante em vários aspectos. “É a primeira contribuição de peso na pesquisa em musicografia em braile no País e abre campo para que mais gente pesquise e contribua nessa área” , afirmou. De acordo com ele, o trabalho dá todas as diretrizes para que os alunos cegos estudem em escolas de música regulares. “Não se trata de aceitar o aluno cego e deixar que ele aprenda sozinho. O trabalho de Fabiana mostra quais as necessidades que o cego tem para se tornar um músico.”
Fonte: Correio Popular Digital (16/02/2010)