Onária Silvia ficou tetraplégica há quatro anos em um acidente de trânsito
“A lei foi a melhor coisa que poderia acontecer no País”
As pálpebras abriram e a única imagem foi de um teto branco, de onde saía uma luz forte. Por impulso, ela tentou levantar o dorso, depois as pernas, os braços. Tudo em vão. Os lábios então se movimentaram e, temendo a resposta, saiu a pergunta: “O que aconteceu com os meus irmãos?”
Onária Santana Silva tinha só 25 anos quando dirigia pela estrada, levando a bordo três de seus nove irmãos no carro. Foi passar férias na Bahia, terra da família. Vaidosa, Onária se achava gorda com seus 55 quilos distribuídos em 1,70m. O jeito foi caprichar nas doses de remédio para emagrecer. Todos os dias, uma pílula.
A proposta era passar dois meses viajando. Onária tinha carro e boa companhia. Medo da estrada?
O que poderia acontecer com uma jovem que, de tanta experiência dirigindo pela “selva” paulistana, foi escalada como motorista da turma? Nunca havia sofrido um arranhão, mesmo sendo adepta do hábito tão comum de beber uma ou outra cervejinha, pegar a chave a cair no mundo. “Ali era o interior da Bahia, minha gente!”
Era 48º dia de viagem. Onária ainda tinha muitos planos. Tantos que ela nem parava para pensar neles. Não foi preciso beber naquela ocasião. Não foi preciso cruzar com outro carro. Ela simplesmente apagou enquanto dirigia. Pode ter sido a mistura de droga para emagrecer, sol, dieta restrita. O fato é que quando acordou Onária viu o teto, tentou levantar o dorso e perguntou pelos irmãos. “Com eles não aconteceu nada, era a minha maior preocupação. Comigo, eu não entendi direito. Para falar a verdade, faz quatro anos que eu estive na Bahia e faz quatro anos que eu tento entender.”
O fim era o recomeço
Onária Santana Silva virou paciente de centros de reabilitação. Na ficha médica estava escrito: tetraplégica, lesão medular, fratura na coluna cervical. Ela já tinha aprendido que esse diagnóstico significava perder os movimentos das pernas e dos braços. Mas nunca ninguém havia contado o quanto fica difícil se expressar em condições como esta. Mostrar medo, insegurança, tristeza, carência. “Minha irmã veio me visitar. Eu olhava para ela e dizia, mana você não imagina o quanto eu queria pegar na sua mão.” Não dava. Naquele acidente, foi o fim de muitas coisas. A Onária parou de dançar, não corre mais como adorava, não vai ao cinema quando quer. Também não é mais marrenta como antes.
“Mas as coisas começaram a melhorar quando eu percebi que aquele acidente também foi o recomeço de muitas coisas. Eu aprendi a amar a minha casa, adoro conseguir sozinha pegar um copo de água e beber, aprendi a escrever sozinha e fiz um monte de bilhetinhos, aprendi a me divertir com as possibilidades que eu tenho, aprendi a mostrar mais meus sentimentos (como ficou um tempo sem conseguir pegar na mão da irmã, ela passou a falar mais ‘eu te amo’).
Namorar é outro tipo de relacionamento que ela reaprende. O mesmo namorado que não foi para Bahia, também não saiu da vida de Onária. Está ao lado dela, reaprendendo a mostrar carinho. “Vou confessar que ainda não cheguei nos finalmente depois da cadeira de rodas. Estou com um pouco de vergonha. Será a minha primeira vez.”
Não foram poucos os aprendizados e nem fáceis, conta a jovem. Já são quatro anos na cadeira de rodas e muitas conquistas. “Sou mulher, sou viva, posso trabalhar, passear, viajar. Se tivesse morrido, como já cheguei a pensar, não teria conhecido minha sobrinha Vitória, que nasceu depois do acidente. Não teria falado para as minhas irmãs o quanto eu as amo, não teria conhecido o meu corpo como conheço.”
E se?
Na metade dessa nova vida, Onária deparou-se com uma legislação que sugeria terminar com a pergunta que ela mais ouvia nos centros de reabilitação. Ela credita seu acidente às anfetaminas que tomou no dia do acidente e quase diariamente perguntou-se “E se eu não tivesse tomado aqueles remédios?” O tal “e se” não era uma dúvida exclusiva. Nos companheiros em cadeira de rodas que ela encontrou pela vida, a bebida alcoólica era a grande responsável pelas paralisações. Todos que passaram a enxergar a vida em cima de uma cadeira de rodas se perguntavam também: e se eu não tivesse bebido naquele dia?
“A lei seca foi a melhor lei que poderia ter acontecido para o Brasil. Dói ver que as pessoas ainda bebem e dirigem. Nós que estamos deficientes somos os principais exemplos de que não é nada seguro fazer deste hábito uma rotina.”
Reabilitação
As principais conquistas de Onária ela credita ao Instituto Lucy Montoro, hospital da rede pública de São Paulo, equipado com a verba economizada no primeiro ano da lei seca. No início da legislação, houve uma redução de atendimento de vítimas de trânsito que permitiu ao governo paulista investir R$ 17 milhões na unidade. O hospital tornou-se referência de atendimento de pacientes que perderam os movimentos. “A maioria que chega aqui feriu-se no trânsito, principalmente de moto”, descreve o fisioterapeuta do Lucy, Gemal Emanuel Pierre.
Junto com eles, Onária trava uma batalha três vezes por semana para conseguir recuperar o que achou que nunca mais teria de volta. Para tirar a foto que está na reportagem, pro exemplo, ela penteou os cabelos e passou batom. Sem a ajuda de ninguém.
Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/
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