Onde está a felicidade? (Reflexão sobre o filme “Como eu era antes de você”)
Jorge Henrique Vieira Santos[*]
O filme “Como eu era antes de você“, que estreou nos cinemas em 16 de junho, (alerta de spoiler) trouxe às telas, mais uma vez, a delicada questão da eutanásia. O protagonista, que sofreu uma lesão medular grave e se tornou tetraplégico, decide recorrer ao suicídio assistido. Não se trata aqui de fazer o ataque ou a defesa da abreviação consentida ou provocada da vida, tampouco fazer uma crítica cinematográfica, apenas quero suscitar alguma reflexão sobre a questão da felicidade e da dignidade da condição de pessoa com deficiência, pois não é a primeira vez que essa condição é retratada no cinema como o fim da possibilidade de uma vida feliz e digna.
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Embora a diretora, Thea Sharrock, tenha afirmado que o filme “é uma história fictícia sobre o quão importante é o direito de escolha” e que “a mensagem do filme é viver com ousadia e superar limites”, o fato é que, ao final da sessão, o que fica para o público é a inequívoca mensagem de que é melhor morrer a viver na condição de tetraplegia. Essa mensagem é reforçada pela sugestão de que o modo de vida do protagonista antes do acidente que mudou sua condição (jovem, rico, bonito, com todas as mulheres a seus pés, que adorava esportes radicais e trabalhava como executivo apenas por hobby) é o ideal de uma vida feliz.
Esse ideal, experimentado anteriormente pela personagem Will Traynor, associado ao sucesso financeiro e ao consumo, a um determinado padrão de beleza e a certo estilo de vida, descarta qualquer outra possibilidade de felicidade. O próprio Will, com certa condescendência, vê como pobre e infeliz a condição da outra protagonista, Louisa Clark, que está satisfeita com sua realidade de moça de classe média numa cidadezinha de interior. Ela decidiu abandonar o sonho de uma faculdade por priorizar o sustento da família e vê no estilo de vida pelo qual optou sua maneira de ser feliz, sentindo-se desobrigada de buscar aquilo que os outros perseguem como propósito. Encontra a felicidade, sem grandes pretensões, nas atividades cotidianas de uma existência simples, em convívio familiar. Will, por sua vez, sentia-se feliz com a realidade vivida anteriormente e, segundo sua visão, quanto mais distante daquele ideal, mais infeliz parece ser a existência de alguém. Pela sua perspectiva (a que prevalece no filme), a possibilidade de felicidade ao lado de Lou Clark soa como um prêmio de consolação, algo muito aquém do que busca para si, algo pequeno demais, incapaz de fazê-lo suportar sua nova condição de vida, que considera deplorável. É em meio a essas perspectivas antagônicas que a condição de deficiência é representada como uma sentença definitiva de infelicidade, como uma condição indigna do ser, como a pior das formas de existência, aquela que motiva o protagonista, com o apoio de sua família, a pôr termo à própria vida, mesmo tendo encontrado em Lou Clark um amor sincero e dedicado.
Vejam só, essa condição, que, de acordo com o filme, nem mesmo no amor sincero encontra redenção, é aquela em que vivo há 35 anos e em que vivem inúmeras pessoas no mundo. É também a de Francesco Clark, autor do livro “Walking Papers” (citado no filme). Esse autor, segundo consta, não gostou de ter seu nome associado a um enredo que sugere a eutanásia como única alternativa para quem se encontra nessa condição, pois em seu livro busca, justamente, demonstrar que tornar-se tetraplégico não é o fim da vida, mas o início.
Quem traz alguma deficiência congênita conhece apenas essa forma de estar no mundo e jamais optaria por não viver. Quem se tornou pessoa com deficiência passa a conhecer duas condições de existência e, obviamente, precisa adaptar-se ao seu novo modo de viver, buscando nele outras motivações e alegrias, outras perspectivas e desejos, diferentes formas de conduzir o novo jeito de estar no mundo. Compreendo que há vários níveis de tetraplegia, cada caso é um caso, alguns apresentam maior comprometimento físico e demandam maiores cuidados, outros nem tanto. Embora sejam inegáveis certas limitações e obstáculos, não há, necessariamente, uma sentença inexorável de infelicidade instituída pelo fenômeno da deficiência. As grandes barreiras que a pessoa com deficiência tem de enfrentar e que provocam, de fato, sofrimento e frustração não são inerentes à sua condição. O maior sofrimento que lhe é provocado resulta do estigma, das limitações interpostas pelo meio, da segregação de que é alvo, de sua não aceitação, cuja origem é uma construção histórica e social. Por isso, há que se lutar contra o preconceito e a falta de oportunidades, há que se impor perante uma sociedade que não tolera nem sabe conviver com a diversidade. No entanto, o valor da vida é superior a qualquer obstáculo que se interponha no caminho.
O fato é que algumas pessoas, independente de sua condição física, aprendem a lidar melhor com as adversidades que a vida traz, outras não. Os desequilíbrios emocionais que levam alguém a considerar a possibilidade de abreviar a própria vida, mesmo que ganhem ares de convicção, não podem nem devem ser tomados de forma tão contundente, sem que se pondere toda a complexidade envolvida. O filme reduz a motivação para a eutanásia à condição de deficiência e põe um ponto final na questão. Desconsidera, inclusive, a possibilidade de se viver uma relação de amor sincero, de se dividir a existência ao lado de alguém que se ama.
O argumento subjacente que sustenta a opção pela eutanásia no filme fundamenta-se na ditadura da felicidade em que vivemos contemporaneamente e que nos impõe algo que é humanamente impossível, pois o ideal de felicidade projetado é inatingível para a maioria das pessoas, com deficiência ou não. Mesmo para a minoria que o alcança, não se configura, de fato, em plena felicidade, tampouco se converte em estado permanente de bem-estar, pois se reduz apenas ao consumo e à adequação aos padrões socialmente impostos. Ora, sabemos que nem o consumo, nem a adequação a um padrão de beleza, ou a um estilo de vida, são capazes de preencher os vazios da existência, de suprir todas as carências humanas. A vida envolve muitos fatos que trazem sofrimento, perda, dor, confronto, contrariedade. Independente da condição de existência, viver plenamente talvez consista em aceitar a dor, aprender a gerir o sentimento de frustração e de fracasso, vivenciar e enfrentar o sofrimento das situações cotidianas, confrontar as adversidades e empreender esforços para transformar o meio. Isso, associado aos fatos de prazer, satisfação, bem-estar, amor, pertencimento, permite-nos o autoconhecimento e, talvez, possa nos fazer viver de forma mais plena. Quem sabe aí esteja a felicidade.
(Jornal do Dia, Opinião, pag. 04, Aracaju/SE, 01/07/16) [*] Jorge Henrique Vieira Santos é Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), membro Grupo de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – GELINS/UFS e do Núcleo de Pesquisa em Inclusão Escolar da Pessoa com Deficiência – NUPIEPED/UFS e autor do livro “A polidez no Discurso sobre a Inclusão da Pessoa com Deficiência na Escola”, lançado este ano pela Editorial Paco.