Pandemia isola e tira (mais) direitos das pessoas com deficiência
Por Maria Eduarda Lannes, compartilhado de Projeto Colabora
Quarentena inviabiliza acesso a serviços essenciais para eles, que ainda veem doenças se agravarem pela falta de exercícios adequados, impossíveis de fazer em casa
Antes da pandemia, a advogada e publicitária Daniele Americano frequenta a academia todos os dias. O representante comercial Raphael Mariani se
exercitava com um personal trainer de três a cinco vezes por semana, e ia regularmente a uma manicure aparar as unhas. Para pessoas com deficiência como eles – 6,7% da população brasileira –, serviços considerados não essenciais são atividades básicas de saúde, e viver sem elas tem tornado a quarentena ainda mais
difícil.
Sessões de fisioterapia são essenciais para muitos casos de deficiência física, especialmente para distrofias musculares. Em síndromes degenerativas, quanto
menos se movimenta o corpo, mais rápido os movimentos se perdem. É o que preocupa Raphael, que tem hemiplegia e teve que interromper a reabilitação. “Não estou mais exercitando o lado esquerdo do corpo. Agora, faço tudo com o direito, o esquerdo fica só de decoração. Tento fazer coisas pequenas, como pegar o controle da televisão ou abrir a porta, mas não consigo recriar alguns dos exercícios sozinho”, explica o jovem de 25 anos, que necessita de ajuda para ações aparentemente simples: “Não consigo cortar as unhas. Estão tão grandes que nem uso mais luvas de proteção, porque furam. Não tenho opção a não ser ir a
um salão”.
Muitas deficiências são causadas por doenças. Daniele, 43 anos, perdeu os movimentos e a sensibilidade da altura do peito para baixo por uma neuromielite óptica em 2012. Desde então vive em relativa autonomia como cadeirante, experiência que compartilha no blog Menina Coragem. Mora sozinha desde o fim de 2019, quando o pai se mudou para um lar para idosos, e vinha contando com uma ajudante nas tarefas domésticas. Com a pandemia, deu licença à diarista, que não poderia fazer quarentena com ela, como se recomenda. A doença autoimune, que afeta o sistema nervoso central, é mais um fator de risco para covid-19. Daniele fazia fisioterapia, natação e balé numa academia que fechou devido à pandemia. “Minha rotina diária era de exercícios físicos, e estou sentindo bastante falta. Tento recriar em casa, mas não é a mesma coisa”. O sobreuso dos membros superiores vem causando muitas dores: “Está difícil. Sinto muita dor nos braços, para varrer, lavar, mas estou me virando”. A cada 15 dias, um vizinho ajuda a cuidar das plantas do jardim da casa em Itaipu, Região Oceânica de Niterói.
Essa parcela da população já vivia certo isolamento parcial, devido à falta de acessibilidade e mobilidade urbana, e é parte do grupo de risco. Quanto mais limitada a locomoção e quanto maior a necessidade de cuidado, mais exposta à Covid-19 pode estar a pessoa, alerta a Organização Mundial da Saúde. E perder a rotina pode aumentar problemas de saúde mental, que muitos já enfrentam, como a ansiedade e o estresse.
A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Catalina Devandas, lançou alerta mundial sobre os
cuidados com portadores de deficiência durante a crise sanitária. Mas pouco tem sido feito para orientar e apoiar o segmento na prevenção contra a pandemia.
Mas certas orientações de proteção indicadas pela OMS, como manter distância e evitar tocar superfícies, são impossíveis para pessoas com deficiência visual, que
tanto dependem do tato e da ajuda de desconhecidos nas ruas e nos transportes públicos. “Muitas pessoas ficaram resistentes a oferecer ajuda”, lamenta a diretora da Associação dos Deficientes Visuais do Estado do Rio de Janeiro, a professora Fernanda Shcolnik, 37 anos, que tem baixa visão devido a uma retinose pigmentar, doença degenerativa da retina. “As pessoas não precisam parar de ajudar. É só fazer da forma adequada para que ninguém se contamine. Tudo é uma questão de informação. Se a pessoa está de máscara, ela pode nos acudir. Geralmente a gente pega no braço de quem está ajudando, mas agora, como se usa o braço para espirrar, é para a gente pegar no ombro do outro”, explica ela, que encontra o que precisa tocando nos objetos em superfícies, e anda com apoio de uma bengala. “Quem usa objetos de acessibilidade fica ainda mais exposto. Cadeira de rodas, joysticks, órteses e próteses se tornam focos de contágio, e a higienização é imprescindível”, destaca.
A comunidade troca informações sobre iniciativas independentes, como o Guia Para Todos Verem – Coronavírus, aplicativo com informações sobre a covid-19 para pessoas com deficiência visual. Fernanda reforça a importância da comunicação, e reclama da falta de informações: “Não vi nenhuma comunicação do governo federal dirigida às pessoas com deficiência”, critica.
A Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, ligada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, publicou uma cartilha sobre o novo coronavírus, com versão para libras, listando cuidados a serem tomados, como “isolar-se o máximo que puder” e “se possível, suspender idas a clínicas de
reabilitação”, sem oferecer alternativas, ainda que paliativas.
Sobre a comunicação do governo federal, Daniele avalia: “É péssima, não tem muita informação. A gente não existe para o governo. Neste momento de pandemia, em que o foco está muito na doença, aí é que a gente ficou esquecida mesmo. É um trabalho que grupos de pessoas com deficiência estão tentando fazer. Porque a gente é realmente esquecida”.
No Rio, o governo do estado lançou cartilhas com instruções gerais para pessoas com deficiência e doenças raras com Covid, orientações para pessoas com doenças raras e seus cuidadores e outra para profissionais de saúde que assistem pessoas com deficiência e doenças raras. A Coordenação de Reabilitação da
Pessoa com Deficiência da Secretaria Municipal de Saúde divulgou nota à comunidade em março, quando adotou escala nas unidades e suspendeu atendimentos em grupo, capacitações e oficinas. “Essas unidades também devem se adequar às rotinas de cuidados para proteger não só as pessoas atendidas, mas todos os que nelas atuam”, afirmou a coordenadora, Cida Vidon, em audiência ao Ministério Público fluminense em abril.