Preconceitos na contramão da inclusão social
Encontrei no site Bengala Legal, o artigo “Preconceitos na contramão da inclusão social” escrito por Romeu Kazumi Sassaki. Achei muito interessante compartilhar esse artigo com você, caro leitor, pois trata-se de exemplos de preconceitos inofensivos e engraçados, mas que de alguma forma pode humilhar ou constranger uma pessoa com deficiência e consequentemente reforçar ainda mais o preconceito. Como são vários exemplos, postarei alguns deles durante a semana. Veja, abaixo, dois exemplos:
O leitor João Diógenes Caldas Salviano, de Recife, na carta que enviou ao Fórum dos Leitores do jornal O Estado de S.Paulo (18/3/02), revela, quiçá inadvertidamente, sua noção equivocada sobre o autismo. E, ao apontar (conscientemente, é claro) os parlamentares como “autistas”, ele demonstra sua total falta de respeito pelas pessoas com autismo. Aproveitou o título do programa televisivo “Casa dos Artistas”, que estava em voga, para construir o trocadilho “casa dos autistas”. O jornal, por sua vez, valorizou o trocadilho, utilizando-o como título da carta.
Não estou aqui analisando o mérito ou demérito do tema “CPMF, reforma tributária, tucanos e pefelistas”, que o leitor João Salviano abordou. Estou reprovando a atitude preconceituosa embutida na analogia que ele fez entre “pessoas com autismo” e “parlamentares dissociados da realidade, retroalimentando apenas o ego e a vaidade sem limites racionais”. Reproduzo abaixo a referida carta.
1º Exemplo
Analogias preconceituosas envolvendo o autismo
FÓRUM DOS LEITORES, O Estado de S.Paulo, 18/3/02.
Casa dos autistas
A crise entre tucanos e pefelistas nada traz de positivo ao brasileiro. Seria interessante se a maioria da classe parlamentar derrubasse essa CPMF e fizesse urgentemente a reforma tributária simples, objetiva e transparente, em benefício dos consumidores e dos produtores. Políticas públicas sim, CPMF não. Daqui a pouco nos livraremos dos nojentos reality shows de vazio cultural total e QI zero. Mas será que, nestes oito anos de tucanato com pefelistas e peemedebistas, não estaremos participando da “casa dos autistas”, dos que vivem dissociados da realidade social, retroalimentando apenas o ego e a vaidade sem limites racionais?! – João Diógenes Caldas Salviano, Recife.
2º exemplo
Associando rodovias ruins a pessoas em cadeira de rodas
No caderno Economia, do jornal O Estado de S.Paulo, o colunista Joelmir Betting escreveu a respeito do péssimo estado em que se encontravam as rodovias brasileiras. O conteúdo em si, focalizando o descaso das autoridades, não tem nada de errado. O problema está na analogia que ele fez (“rodovias ruins = pessoa com tetraplegia”), analogia esta enfatizada pelo título “Em cadeira de rodas”. Escrevi então para o jornal, nos seguintes termos:
Ao
FÓRUM DOS LEITORES
fórum@estado.com.br
São Paulo, 18 de janeiro de 2000.
Senhores:
Na excelente matéria “Em cadeira de rodas” (18/1), Joelmir Betting se refere ao “transporte rodoviário, apresentado como o grande vilão de um Brasil quase tetraplégico nesta vigília do século 21.” Quiçá inadvertidamente, ele utilizou analogias preconceituosas, segundo as quais usar cadeira de rodas ou ser tetraplégico são coisas ruins. No título está implícita a mensagem de que o Brasil anda em cadeira de rodas porque suas rodovias não funcionam. E o texto associa a figura de pessoas tetraplégicas com a imagem negativa de um Brasil cujo sistema rodoviário está quase paralisado. A mídia deve apontar a precariedade dos serviços públicos e privados, mas tomando o cuidado para não reforçar estereótipos a respeito deste ou daquele segmento da população. – Romeu Kazumi Sassaki, Código de assinante: 02310852-5, e-mail: romeukf@uol.com.br.
Lamentavelmente, o jornal não me respondeu.
Dorinha, a nova personagem da Turma da Mônica
A primeira história de Dorinha, ilustrada na edição n. 221, da revista Mônica, de novembro de 2004, mostra a maneira positiva como essa personagem e o seu cão-guia Radar entram em contato pela primeira vez com a Turma da Mônica.
Dorinha logo estabelece ótimas relações de amizade com a Mônica, o Cebolinha, o Cascão, a Marina e a Magali.
Dorinha mostra estar bem resolvida com a deficiência que possui (cegueira). Sabe andar com o cão-guia e com a bengala dobrável, assim como sabe lidar com as reações das pessoas. De bom humor e autoconfiante, ela está com seus sentidos de audição (p. 9 a 17), tato (p. 11) e olfato (p. 16) sempre conectados com tudo o que ocorre no ambiente em seu entorno. As situações focalizadas são simples e, através delas, o leitor percebe que Dorinha mostra suas habilidades com naturalidade, sem ostentação.
Na condição de criança, Dorinha é apresentada como igual às outras crianças. Na condição de cega, a imagem de Dorinha é positiva, digna, simpática. Em suma, é louvável a idéia de Maurício de Sousa no sentido de inserir, na Turma da Mônica, uma criança com deficiência que tenha as características físicas, sociais e emocionais de Dorinha. Histórias em quadrinhos podem constituir um dos meios de conscientização de crianças a respeito da inclusão social de grupos vulneráveis, excluídos. Mas não por serem histórias em quadrinhos e sim pela correta construção de personagens e situações nessas histórias.
Por esse motivo, três detalhes precisam ser apontados na primeira história de Dorinha.
Primeiro, a bengala nunca aparece dobrada; quando ela aparece, está sempre estendida. De um quadrinho ao outro, a bengala simplesmente desaparece. Os desenhos não mostram onde a bengala poderia estar quando Dorinha não a está usando.
Segundo, em nenhum momento foi utilizado o termo “cão-guia”, cuja divulgação se faz tão necessária para a conscientização do público.
Terceiro, cada personagem da Turma usa apelidos para provocar os demais: Cebolinha chama a Mônica de “golducha” (p. 4 e 11); Cascão chama a Mônica de “dentuça” (p. 5); Mônica chama o Cascão de “sujinho” (p. 5); Cebolinha se refere aos “dentões” da Mônica (p. 11); até Dorinha se refere à “fama de sujinho” do Cascão (p. 15) e à Magali como “a comilona da turma” (p. 15). Apelidos inocentes? Nem tanto. Hoje, pais e professores estão tomando consciência de um fenômeno escolar chamado “bullying“, o perigoso hábito de usar apelidos pejorativos com os quais muitas crianças acabam destruindo a auto-estima e até a vida de alguns colegas seus.
Para saber mais sobre “bullying”: 1. Revista Nova Escola, edição n. 178, dezembro/2004 (“Bullying – Como lidar com ‘brincadeiras’ que machucam a alma. Acabe com apelidos, fofocas e comentários maldosos, tão comuns da escola”, p.58-61). 2. Revista Época, edição n. 315, maio/2004 (“Sutil e cruel agressão. Pesquisa comprova que apelidos, provocações e outras formas de violência verbal e física entre crianças deixam marcas profundas”, p.54-61).
Mônica e Magali têm um novo amigo
Completando seu plano de acrescentar dois personagens com deficiência às histórias da Turma da Mônica, Maurício de Sousa lançou no n. 222 da revista Mônica, edição de dezembro de 2004, um menino que utiliza cadeira de rodas.
À semelhança de Dorinha, uma menina cega apresentada no n. 221 da mesma revista, este menino também faz sua estréia de uma forma positiva ao ser referido como “um gatinho, gatérrimo” (p. 4) pela Magali em sua animada conversa com a Mônica. Nos dois terços iniciais da história, Magali e Mônica conversam com muita empolgação a respeito do garoto e acabam indo até a casa dele “só para dar uma espiadinha”. Cada detalhe que vêem (marcas no gramado, porta larga, rampa, pia e espelho baixos, barras de apoio junto ao vaso sanitário etc.) é interpretado por elas sem saberem que o menino anda em cadeira de rodas. Ele então aparece apenas no terço final da história e explica todos esses detalhes com naturalidade, inclusive demonstrando com prazer como ele os utiliza.
Por fazer parte de um plano do desenhista Maurício para possibilitar a interação entre crianças com deficiência e os antigos personagens da Turma da Mônica, a história deste novo amigo precisa ser analisada também pelo ângulo crítico. A tradicional tendência de dar um apelido a todos os seus personagens fez com que Maurício acabasse eliminando (deliberada ou inadvertidamente) o nome do novo personagem. No primeiro contato com Mônica e Magali, o próprio menino diz que “… (todos) me chamam de Da Roda” (p. 22). No último quadrinho, as meninas dizem: “Bem-vindo à turminha, Da Roda!” (p. 25). É o apelido sobrepondo-se ao nome, ao contrário do que é extremamente importante na construção da nossa identidade pessoal na vida real. Além disso, o apelido “Da Roda” ressalta a cadeira de rodas e não a pessoa que a utiliza. Esta é uma das armadilhas comuns em que caem pessoas desejosas de valorizar a questão da deficiência sem se darem conta do preconceito embutido. Observação: Foi divulgado na internet que Maurício de Sousa falaria, pelo bate-papo da UOL em 17/12/04, sobre este novo personagem cujo nome seria Luca e cujos apelidos seriam “Paralaminha” e “Da Roda”. Na história que chegou às bancas de jornal no dia 20 dezembro não se confirmaram o nome Luca e o apelido “Paralaminha”.
Histórias em quadrinhos, mesmo focalizando personagens infantis, não estão isentas de apresentar um mínimo de precisão técnica, já que a intenção do desenhista é a de divulgar exemplos de inclusão social em relação às pessoas com deficiência. E nesta nova história percebem-se as seguintes falhas técnicas: 1. A cadeira de rodas não tem aros propulsores (capa, p. 22, 24 e 25) e, por isso, o personagem “Da Roda” segura os pneus das rodas para movimentar a cadeira, o que é incorreto; 2. A cadeira possui um único apoio para os pés (capa, p. 20 a 25), seguindo um modelo muito antigo, incompatível com a realidade do personagem; 3. A rampa na entrada da porta é muito curta e a inclinação é inadequada (p. 13, 22, 24 e 25); 4. A cesta de basquete está baixa demais (p. 10 e 23); 5. O vaso sanitário está colocado longe da parede lateral (p. 17 e 21), fazendo com que a respectiva barra de apoio fique fora de alcance; 6. A outra barra de apoio (que está pregada no chão ao lado do vaso sanitário) deveria ser afixada atrás do vaso sanitário. Outra solução seria a de manter a barra afixada no chão e mudar a outra barra para trás do vaso; 7. O espelho está colocado verticalmente (p. 16, 20 e 21) quando deveria estar ligeiramente inclinado; 8. O modelo da maçaneta da porta (p. 12) não é adequado. Portanto, são falhas que poderão e precisarão ser corrigidas nas próximas histórias.
Destaquem-se, na história de “Da Roda”, os detalhes corretos do ponto de vista da acessibilidade: a maçaneta da porta (p. 22 e 25) e o abridor da torneira seguem modelos aprovados; a cesta de basquete desenhada na capa está colocada numa altura razoável; e a pia do banheiro não tem coluna de apoio, o que facilita a aproximação da cadeira de rodas.
Desserviço à imagem da pessoa com autismo
Na entrevista concedida a Rafael Cariello, da Folha de S.Paulo, o cientista político Renato Lessa utilizou duas vezes a palavra “autista” para apontar aspectos depreciativos do comportamento de governantes e congressistas. Por sua vez, o jornalista repercutiu essa palavra por três vezes ao abrir sua matéria em 15/5/05: uma no título em letras garrafais e duas na introdução.
A utilização do adjetivo “autista” no contexto tratado pelo entrevistado configura um exemplo de desserviço à imagem da pessoa com autismo. Inadvertidamente, foi passada ao leitor a idéia equivocada de que o comportamento das pessoas com autismo teria a mesma característica negativa apontada nas ações do Executivo e do Legislativo.
Tal uso vem na contramão da história, pois hoje aceitamos as diferenças individuais da pessoa com deficiência como atributos dignos de respeito e valorização.
Nos trechos da matéria, escaneados e abaixo transcritos, grifei os cinco trechos em que o termo “autista” foi utilizado indevidamente.
Governo e Congresso têm comportamento autista, afirma Lessa.
RAFAEL CARIELLO, da Sucursal do Rio
Folha de S.Paulo, 15/5/05.
O cientista político Renato Lessa afirma que governo e Congresso agem de forma autista e predatória. A lógica do Executivo e do Legislativo, diz ele, é de uma dupla e simultânea captura: um tenta ocupar cargos na administração, o outro, conquistar maiorias.
Diz o professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro: “Se essa agenda ficar por muito mais tempo confinada a relação entre esses dois atores, a sociedade de alguma maneira vai tender a ultrapassar essa agenda. É difícil pensar a sustentabilidade indefinida de um padrão autista”.
Folha – Tal padrão é modificável?
Lessa – A modificação, se vier, virá de fora para dentro. Machado de Assis sugeria que a gente olhasse o Legislativo do ponto de vista das galerias. Se essa agenda ficar por muito mais tempo confinada à relação entre esses dois atores, a sociedade de alguma maneira vai tender a ultrapassar essa agenda. É difícil pensar a sustentabilidade indefinida de um padrão autista.
Folha – Ele também disse ver riscos de uma crise semelhante à ocorrida no governo João Goulart.
Lessa – É uma ameaça retórica. Essa crise atual nada tem a ver com o quadro do Goulart. (…) Há quem acredite que para entender a política é preciso entender a relação entre Executivo e Legislativo. É uma visão autista. Para quem pensa assim, o governo Goulart caiu porque perdeu a sustentação parlamentar, mas não leva em conta o que acontecia no ambiente social.
Fonte: Bengala Legal
Veja:
Verinha, minha doce amiga, teu blog continua excelente e muito esclarecedor!!
Saudades de ti, estejas sempre bem…
Beijo grande!
Obrigada, querida!!
Também estou sentindo saudades de você…
Beijos e se cuida, Regina!
Parabéns pelas colocações!
Sou professora do Ensino Fundamental e faço especialização em Inclusão Social.
Considero de fundamental importância pessoas estarem alertas a esses tipos de comentários infelizes e equivocados. É necessário que não passe desapercebida a inadequação dessas comparações.