Primeira advogada pública deficiente visual do Recife
Por Yasmin Freitas
Quem vê a funcionária pública Carla Oliveira, 28 anos, empossada como advogada na Procuradoria do Recife, nem imagina o quanto de sua história é marcada por dificuldades e superação de preconceitos em relação à sua deficiência visual, sem falar na necessidade constante de se reafirmar diariamente aos olhos dos outros, como se devesse provar que merece ter chegado aonde está hoje. Tudo começou no ano de 2006, quando Carla, ainda adolescente, adquiriu uma apostila para concurso destas facilmente encontradas em bancas de revista. Dia após dia, a mãe lia para a filha durante um período de quatro horas. Assim, a então candidata a uma vaga de nível médio na Secretaria de Educação, Esporte e Lazer da Prefeitura do Recife (PCR) pôde absorver o conteúdo escrito nas páginas. Carla tem comprometimento para enxergar desde a infância, fase da vida em que o glaucoma congênito – doença hereditária decorrente do aumento da pressão intraocular – reduziu a sua visão em mais de 90%. Não foi um empecilho. Aos 18 anos, ela foi aprovada na seleção da PCR, um marco para o início dos tempos de servidora.
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Após dar seus primeiros passos no concurso da Secretaria de Educação, dez anos atrás, a funcionária pública percorreu um longo caminho profissional. Graduou-se como uma das melhores alunas da classe no curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), em 2012, e obteve resultados de destaque no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Protagonizou, ainda, um número sem fim de aprovações em outras repartições públicas, a exemplo dos concorridos Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Secretaria da Fazenda de Pernambuco (Sefaz-PE), Tribunal Regional do Trabalho de Alagoas (TRT-AL) e Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco (TRT-PE). No TRT-PE, onde atuou durante três anos como analista, recebeu um voto de reconhecimento e aplauso. Por meio do documento, o tribunal ressalta a determinação e competência de Carla na superação de dificuldades e por não se limitar à sua deficiência visual.
A Procuradoria do Recife, órgão em que atua hoje como primeira advogada pública com deficiência visual, foi uma das mais recentes conquistas, com nomeação anunciada no último dia 3 de fevereiro. “Em muitos concursos, tive boas notas em cargos de nível médio e superior, e conseguiria ser empossada mesmo sem levar em conta a chamada para pessoas com deficiência”, comenta a funcionária pública. Mas o que parece apenas um enredo permeado por vitórias esconde, em suas entrelinhas, uma sucessão de dificuldades iniciadas desde o momento de se preparar para as provas. “Vim de uma família humilde e não tinha condições de arcar com material de estudo digital. Era muito inacessível quando comecei a me preparar para concurso”, lembra Carla.
Mesmo quando as condições começaram a melhorar e a servidora teve acesso a conteúdo adaptado às suas necessidades, ainda precisava digitalizar tudo no computador, o que consumia grande parte de seu tempo disponível. Nos cursos preparatórios em que estudou, também havia dificuldade de adquirir livros digitais que pudesse utilizar com auxílio de ferramentas leitoras de tela.
E os desafios não terminam com a conquista das nomeações. Em sua grande maioria, os espaços de trabalho das entidades públicas não estão preparados para receber profissionais com necessidades especiais, como acontece no caso de Carla, que para atuar na Procuradoria, demanda aparatos como um leitor de tela, scanner para digitalização de documentos e um conversor de textos para imagens. “Apesar da receptividade tranquila e da aceitação da minha deficiência, ainda estamos passando por um processo de adaptação para adequar o ambiente de trabalho às minhas necessidades, porque são mudanças que dependem de licitação para comprar essas ferramentas”, aponta Carla. Atualmente, a legislação federal estabelece uma cota de pelo menos 5% das vagas destinadas a pessoas com deficiência em concursos. O número é seguido pelo poder público estadual. No caso da Prefeitura do Recife, 10% do número total de oportunidades são destinadas a deficientes.
Apesar da alta demanda de pessoas com deficiência por concursos públicos e da existência de leis com objetivo de garantir a existência de servidores com limitações, as entidades não se preparam com antecedência para receber o profissional adequadamente. Em vez disso, aguardam as nomeações para apenas depois iniciar o processo de inclusão. “É muito negativo, porque o profissional empossado não pode desempenhar suas funções de forma adequada e a equipe sai prejudicada. Apesar de ter havido uma convocação para aumentar o número de servidores, o trabalho fica comprometido por questões operacionais”, opina a advogada.
Outra questão é o preconceito de alguns gestores que, segundo a servidora pública, negam-se a aceitar deficientes em seus setores por duvidar da capacidade dos profissionais, fazendo com que eles precisem se esforçar ainda mais para provar que podem ser tão eficientes quanto qualquer outro concursado.
Fonte: http://jc.ne10.uol.com.br/